Algodão Pima, de Érika Gentile
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Será que na sua gaveta também tem aquela peça afetiva que todo mundo manda jogar fora, sem compreender o significado? No meu caso, trata-se de uma camiseta Hering, masculina, dessas bem cavadas, comprada em 1999, quando me mudei para Cuiabá. O calor daqui nunca combinou com rendas e fitas, menos ainda com material sintético. Eu e minha pele, logo na chegada, entendemos a necessidade do algodão para sobreviver. A camiseta passou a ser minha fiel companheira, usava depois do trabalho, em frente a televisão, lendo com a filha antes de dormir, perambulando pela casa vazia nos finais de semana. Branca e sem exigências, entrava na máquina de lavar pela manhã e me esperava na gaveta à noite. Foi ficando tão simbiótico ao ponto de eu só me sentir realmente em casa quando eu me enfiava nela. Isso se repetiu tanto e tantas vezes que cheguei a ser retratada com ela num desenho escolar da minha filha. Não era o desenho da mãe advogada, de salto, com blazer e cabelo preso, a mãe escolhida foi aquela da noite, pés no chão, camiseta branca, tudo desalinhado como é a vida de verdade.
Jamais me ocorreu comprar outra. Fomos incrivelmente fiéis, eu e minha camiseta, por ininterruptos vinte e cinco anos. Mas, de uns anos para cá, sinto sua fragilidade. Deixei de usar a máquina, só lavo na mão, com sabão especial para roupas finas. Precisei costurá-la várias vezes, os esgarçados cada vez maiores, seu tecido foi se tornando transparente, e os buracos eram facilmente alargados num gesto brusco durante a noite.
Economizei seu uso. Só aos domingos. E, confesso, entro com frequência em malharias, procuro na internet "branca, masculina, cavada, de algodão". Já experimentei vários modelos, mas nenhuma se compara. De que outra forma eu me vestiria para as noites de pipoca e Gilmore Girls com minha filha, qual outra peça me devolverá o tempo ido?
Os buraquinhos da minha camiseta são também os meus. Tentei desapegar racionalmente, ouvir a sugestão de jogar no lixo, mas não pode ser. Tenho dormido com uma camisola sem graça, incômoda e incapaz de atender as exigências da minha pele, também mais fina, mais esgarçada.
Lavei à mão pela última vez a minha companheira, guardei num saquinho com um ramo de alecrim na terceira gaveta da cômoda pertencida a minha avó, depois ao meu pai e agora a mim. A gente não se livra da gente.
SOBRE A AUTORA
Érika Gentile se dedica ao estudo da escrita criativa desde 2012. Publicou em antologias, coletâneas e revistas literárias, como Revista Mathilda e Ruído Manifesto. Figura entre os autores do Acervo de Literatura Digital Mato Grossense, integra o Coletivo Literário Maria Taquara. — Mulherio das Letras (MT). Faz parte da publicação do livro de contos "Um corpo ainda é pouco", promovida pelo Coletivo Uma Casa Toda Nossa (2024). É uma das selecionadas para o CLIPE- Curso Livre de Preparação de Escritores 2024, promovido pela Casa das Rosas (SP).
3 comentários
Que delicadeza de texto, obrigada, li sorrindo.
Ah, os objetos e as palavras afetivas. ❤
Só pude voltar a essa deliciosa (como deve ser a camiseta branca) crônica. Linda, Erika. Parabéns.