
Terrorismo estético sobre o corpo feminino: entrevista com Isabella de Andrade
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Por Amanda Pioli*
Quando ganhei de presente o livro Baixo Paraíso (Diadorim Editora, 2023), sem ainda saber do que se tratava, bastaram algumas linhas da sinopse para reconhecer que o livro poderia me destravar algumas memórias. Mas eu não tinha ideia que a narrativa traduziria, quase com a minha voz, tantos sentimentos que me acompanharam ao longo dos anos (aqui peço desculpas à autora por tentar me apropriar de suas belas palavras).
O mais engraçado (de um jeito não cômico) é que tamanha identificação se deu em meio a tantos elementos que não poderiam ser mais diferentes: Baixo Paraíso é o nome de uma cidade no interior de Goiás, onde se passa a história de Marília, uma menina que, no decorrer da trama, se torna mulher, sempre buscando suprimir seus desejos – sejam em relação a Gabriela, por quem se apaixona, ou, e principalmente, pela comida. Dessa forma, a protagonista vive sob uma forte pressão estética, inclusive quando não há ninguém em cena além dela – a pressão já está mais do que internalizada.
Em seu segundo romance, a autora Isabella de Andrade (@isabella_deandrade) reflete sobre como o padrão estético vigente, de um corpo feminino magro e sem imperfeições, interfere diretamente na imagem que construímos de nós mesmas e provoca sofrimento físico e psicológico. Na entrevista a seguir, ela me conta, entre outras questões, como foi abordar essa questão tão dura, mas necessária; o seu processo de escrita; e a repercussão do livro, considerando o seu lugar de fala.
Amanda. “Baixo Paraíso” retrata como questões estéticas atingem a mulher e estão enraizadas em situações que, muitas vezes, nem nos damos conta. Você, inclusive, joga luz em pontos que, no dia a dia, parecem já passar batido. Como foi pensar essas questões e de onde veio à vontade ou necessidade de lidar com o tema?
Isabella. Os temas de Baixo Paraíso vieram justamente por uma proximidade muito cotidiana. Ao longo da vida, sofri inúmeras cobranças estéticas, comentários sobre o meu corpo e questionamentos sobre o que eu comia ou deixava de comer. Esses comentários vinham, despretensiosamente, de amigos, familiares e até mesmo desconhecidos. Comecei a me impressionar cada vez mais com essa permissão que as pessoas davam a si mesmas para falar sobre o meu corpo e/ou alimentação. Quando eu era mais novinha, tudo isso era terrível – engordar, emagrecer, fazer dietas, tentar alcançar um padrão absolutamente distante para o meu tipo de corpo. E aquilo me perturbava, me tirava noites de sono e ocupava minha mente mais que qualquer outra atividade.
Depois de chegar aos 30 anos, comecei a repensar essa experiência cotidiana que pode ser tão violenta com o corpo de meninas e mulheres, e o quanto, naquela época, ainda sem maturidade emocional, essas experiências me tiravam do eixo. Quanta coisa eu poderia ter feito, vivido e pensado se não me cobrasse tanto alcançar um corpo perfeito? Quantas vezes já deixei de entrar na piscina mesmo morrendo de vontade? Quantas vezes senti vergonha por comer algo gostoso na frente dos outros? Todas essas perguntas me assombraram e por muito tempo eu silenciei sobre esse assunto. Não tinha muita coragem para falar sobre as questões que mais me perturbaram ao longo da vida; tudo parecia um grande drama inventado pela minha própria cabeça.
Então, comecei a entender o quanto essas mesmas questões tinham atormentado outras mulheres e o quanto ter passado por isso afetava diretamente a minha personalidade e as minhas experiências de vida ainda hoje. Tudo estava tão latente que começou a sair na escrita, esse espaço tão íntimo e forte de expressão que encontrei. Lembrei de ter visto pouquíssimas narrativas a esse respeito e quis mergulhar com o livro nessa lama que é a pressão estética na vida das mulheres.

Amanda. Como foi o processo de escrita deste romance em relação ao seu primeiro? Houve alguma dificuldade ao abordar esse tema, que passa também pelas diferentes formas da violência?
Isabella. Acredito que a dificuldade tenha vindo pelo tema. Como disse, eu achava difícil falar sobre essas experiências. Distúrbios alimentares, emagrecimento, peso, fome, comida, corpo, medo. Eu me refugiava de todas essas palavras e me escondia desse vocabulário que era tão meu. Queria disfarçar, fingir que era outra coisa, que o caminho tinha sido outro. Então, foi preciso me permitir adentrar nesses espaços, vasculhar gavetas internas, cutucar feridas, olhar com olhos de hoje, de uma mulher adulta, o quão dolorosas foram algumas experiências que vivenciei ainda menina. Apesar da dificuldade de me permitir entrar nesse terreno, depois do primeiro passo tudo se desenrolou como num turbilhão. Eu queria cavar essas experiências há anos, só era preciso que eu mesma me autorizasse.
Fiz o que um professor de escrita que adoro, Marcelino Freire, me aconselhou e cavei até o mais fundo que pude desses espaços, levando as personagens até o ponto mais fundo de seus poços particulares. É difícil adentrar esse terreno da violência, resgatar memórias que o próprio subconsciente tinha dado um jeito de guardar. Mas é justamente nesses espaços, onde mora o nosso medo, em que guardamos o que há de mais importante e profundo. E saber que essas experiências também eram parte da vida de tantas meninas me fez querer seguir em frente.
"Acredito também que ler, dialogar, refletir e perceber outras realidades (como a de mulheres que sofrem violências terríveis a partir do próprio corpo) pode despertar um olhar de entendimento e empatia em quem não vivenciou essas experiências. Além disso, pode criar uma relação de cumplicidade com quem já viveu.
Amanda. Em mais de uma ocasião você já falou sobre a pressão estética que você sentiu e das suas vivências. Em alguns casos, como em um post da TPM, várias mulheres questionaram seu lugar de fala nesse assunto. Como se todas, independentemente do corpo, não estivessem sujeitas às mesmas pressões, em maior ou menor grau. Em que estágio estamos nessa discussão? E qual é o papel da literatura ao abordar o corpo e a autoestima?
Isabella. Esse post da TPM foi um caso quase engraçado, se não fosse trágico. Como disse, eu sempre escondi muito essas experiências e evitei falar de qualquer assunto que envolvesse pressão estética porque, depois de uma certa fase da vida adulta, estabilizei em um peso e em um tipo de corpo que, para muitas pessoas, pode ser considerado dentro do padrão estético. E para outras não. Então, tive receio de falar sobre um assunto em um veículo grande e despertar justamente o sentimento de que estaria falando de um lugar que não fosse o meu. O veículo selecionou algumas fotos minhas no meu perfil do Instagram e misturou versões em que estou com o corpo em maior ou menor tamanho.
Nos comentários iniciais, questionaram se eu poderia estar falando sobre esse tema, mas logo outras tantas mulheres vieram dialogar e chegaram justamente ao ponto de que a pressão estética é sofrida por muitas, em maior ou menor grau de violência. Além disso, é preciso lembrar que boa parte das experiências relacionadas a distúrbios de alimentação e imagem acontecem a partir da mente, e seria ainda mais violento questionar um sofrimento psíquico, independentemente da aparência de quem o coloque.
Não sei dizer exatamente em que grau estamos dessa discussão. Acredito que passamos por ondas. Há ondas de progressão e ondas de regressão, andamos para frente e para trás, às vezes passeando por ciclos, como acontece em toda a história da sociedade. E, apesar de acreditar que a literatura não precisa se colocar um papel prático e utilitário, acredito também que ler, dialogar, refletir e perceber outras realidades (como a de mulheres que sofrem violências terríveis a partir do próprio corpo) pode despertar um olhar de entendimento e empatia em quem não vivenciou essas experiências. Além disso, pode criar uma relação de cumplicidade com quem já viveu e, como já aconteceu comigo em tantas leituras ao longo da vida, quem sabe o livro abra alguma porta ou janela de liberdade para alguma dessas mulheres.
Amanda. Sua protagonista é cercada (majoritariamente) por mulheres ao longo da narrativa – como a mãe, a avó e Gabriela. Com exceção desta última, as relações não são, no cerne, conflituosas, mas mesmo assim geram conflitos internos em Marília. Você acredita que tais relações também se enquadram como tóxicas? A pressão de uma mulher (ou seja, uma igual) pode ser pior que a de um homem?
Isabella. Acredito que essa pressão ou violência independe do gênero de quem a executa. A diferença está em quem sofre essa opressão e, nesse caso, sabemos que grande parte são mulheres. O que acontece, muitas vezes, é que a própria família (mães, avós, tias) reproduzem esses padrões sem perceber. Por isso é importante dialogar, criar espaços para quebrar essas narrativas que se repetem a partir do olhar externo e a partir do olhar tão íntimo da família. No livro, há, sim, relações tóxicas. Marília se permite estar em um espaço de objeção, comparação e disputa constante com Gabriela, o que não é nada saudável. Mas, durante a infância e a adolescência, quando nossa capacidade de lidar com as emoções está em pleno desenvolvimento, essas questões ganham outros contornos, mudam de nome, se escondem. Até na fase adulta. Quantas vezes não tentamos esconder uma relação abusiva debaixo da parte de luz que ela carrega? Marília vai desenvolvendo um pouco essa percepção ao longo da história, assim como Gabriela, que também não se enxergava nesse espaço de violência. Acredito que elas tenham aprendido a equilibrar um tanto mais as medidas enquanto crescem.
Amanda. Você escolheu situar a história em uma pequena cidade do interior brasileiro. Você acredita que existem diferenças em como a opressão estética se impõe de acordo com o ambiente em que ela acontece?
Isabella. Acredito que sim. Já convivi em espaços de vida muito diferentes e uma das coisas que mais guardo na memória em cidades pequenas é o quanto realmente todo mundo se conhece. Todos conhecem sua mãe, seu pai, sua família. Você nunca é “só” fulano. É fulano, filho de ciclano, neto de beltrano. E, nesse caso, a exigência em relação ao comportamento adequado costuma ser ainda maior e os pontos de fuga e liberdade são mais escassos. Por isso, muitos adolescentes desenvolvem uma vontade latente de fugir para outras cidades que, com todos os seus problemas, parecem guardar algum espaço onde ser livre (mesmo que esse espaço seja apenas a percepção de estar longe de rostos conhecidos).#
*Amanda Pioli é jornalista e produtora de conteúdo na Casa Inventada.