Sustentar o estado de escrita
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A missão de manter-se úmida em tempos que ressecam
Por Lara Torres
No momento em que escrevo este texto não estou no meu escritório, nem na minha cidade. Estou no interior, sentada em um café do bairro diante do computador, tentando escutar os pensamentos debaixo da barulheira de um liquidificador, do jingle inconfundível do caminhão do gás e da voz hesitante ao lado, fazendo e refazendo o pedido a uma atendente plácida com caderninho em riste.
Acordei decidida, depois de três dias sem relar em meus escritos, a desligar o modo social e fugir da família duas horinhas, mas em uma segunda-feira às dez da manhã por aqui não há tantas opções assim de refúgio. Ando algumas quadras sob um sol escandaloso e entro no único café aberto com wifi. Mas assim que acendo o computador, um bug inesperado: o teclado perde o controle e me desobedece. Preciso reiniciar. Tenho aprendido que poucas coisas na vida do escritor são tão difíceis quanto manter a constância na escrita. E sem isso é quase impossível concretizar um projeto de fôlego.
Penso o livro-em-gestação como o início de um namoro. Esmago a agenda para caber os encontros, sacrifico horas de sono, deixo outras pessoas e prioridades em segundo plano. Também odeio um pouco tudo o que atrasa ou atrapalha o meu apaixonamento. E está bem que seja assim. Escrever um livro é, afinal, o ato de voltar. E voltar é um ato de Amor.
A parte privilegiada de organizar oficinas e participar delas como mediadora é ser atravessada por diferentes visões sobre o que é escrever. Descobrir o processo dos outros é como assistir uma reação química acontecendo em tempo real e seu resultado luminoso. E é claro que também me alimento desses estímulos. Uma das coisas que aprendi escutando artistas incríveis como Aline Bei e Letícia Bassit, cujas trajetórias também passam pelo Teatro, é sobre a centralidade do Corpo no ato da escrita. Assim como se faz amor com corpo e cérebro em conjunto, quando convocamos o corpo para o ato da escrita uma transformação acontece.
O que isso tem a ver com constância, você me pergunta. Explico.
Perto da minha casa há um parque com uma lagoa. Uma pista de caminhada a margeia, abraçada pelas árvores. Um caminho fresco e sombreado, recortado aqui e ali pela visão da água. Tenho percorrido essa trilha durante 40 ou 50 minutos com frequência quase diária. Acordo, lavo o rosto, passo o café, calço os tênis e saio.
Aos poucos, fui entendendo que o gesto que habita a caminhada, a dança, a corrida, o Yoga - não importa de que movimento estejamos falando - também pode ser disparador de um estado de presença que interessa à escrita. Em movimento, vozes cujo registro é inaudível no dilúvio de estímulos que recebemos diariamente podem ser ouvidas. Aquela ideia sutil existindo em segundo plano pode finalmente revelar-se. É um paradoxo, mas caminhando, escrevo. Com o corpo todo.
Há outra intenção no gesto que não o suor e o cansaço. Algo similar ao que se pretende ao encostar a porta do quarto para escutar a música tocando baixinho. As caminhadas são uma forma, junto com a poesia, o cinema, a literatura, que tenho encontrado de me manter úmida para que a escrita brote, mesmo em meio a sempre excessiva quantidade de tarefas e compromissos, às notícias de um Brasil de murchar o ânimo, ao cotidiano, enfim, que nos resseca.
O que você tem feito para se manter úmida?
1 comentário
Escrevo um diário fico tentando escrever criar uma história