Sem-nome, de Cintia Brasileiro
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Sem-nome
Ele me viu através do vidro, notei seus pés impacientes, mas continuei andando. Mal cruzei a portaria da contabilidade e ele estava lá, pronto para me despir com sua sanha. Segurava um buquê, o maior e o mais caro que já me deu. Os assobios, os pulinhos das moças, as pessoas conhecidas e as desconhecidas, todas nos assistiram. Ele estava em pé, encostado na moto, olhava para mim como um cão perdido e esfomeado.
Do celular de alguém tocava “Porque eu sei que é amor”, dos Titãs. Meu local de trabalho ficava em uma avenida bem movimentada. Na calçada, mais pessoas se tornavam parte da nossa plateia. Algumas filmavam, outras tiravam fotos, ou secavam as lágrimas provocadas pelo calor da cena, que parecia de novela. As borboletas no meu estômago não eram doces como as mocinhas dos filmes da sessão da tarde.
Ele veio sem pressa, sem tirar os olhos de mim, pegou minha mão e se ajoelhou. Um beijo selou nosso silêncio. Subi na moto dele, abracei as rosas e fui embora com meu anel dezoito quilates na mão esquerda. Todos os sinais verdes pareciam estar abertos para nós. Como contar o que se seguiu? Nunca havíamos chegado em casa (e ao gozo) tão rápido.
Por três semanas, não tive do que reclamar.
Apesar disso, no fim de uma sexta, na garupa do meu homem, meu marido, eu ressenti – nada ia ser diferente. Ele acelerava mais e mais e mais. Primeiro, segurei firme, depois, tirei o capacete e desejei que morrêssemos. Não aconteceu. Todos os sinais vermelhos foram ultrapassados. Não devia ter voltado para casa, devia ter ido à festa da empresa.
Vaca, sem vergonha, puta, vadia! Não era a primeira vez que ouvia isso e ele não se cansava de repetir: isso é tudo culpa sua. Caída no chão da sala, me fingi de morta. Cachorra, piranha, biscate! Por que tudo isso? Porque às 17:33, saindo do prédio, troquei acenos com um colega de trabalho, casado e pai de dois filhos.
Graças a Sol, minha vizinha, eu não morri nem fiquei cega. Ela me socorreu depois que ouviu o ronco da moto dele e a cantoria dos pneus explodindo pela rua. Eu fiquei internada por quinze dias. Sol não me abandonou nem por uma noite no hospital, não me fez nenhuma pergunta, não evitou meus olhos (roxos) e sem vida. Sol ainda foi comigo à Delegacia da Mulher.
Alguns colegas do trabalho até tentaram me ligar. A delegada orientou o pessoal do RH. Tudo correu em sigilo. Abandonei meu emprego, a cidade onde nasci, o meu sonhado curso de pós-graduação e tranquei meu peito. Não posso contactar meus amigos, nem a Sol.
Ora sinto uma inquietação e um vazio, ora uma raiva avassaladora e formigante.
Saí de casa há dois anos, ninguém sabe que vi minha barriga crescer. Nem imaginam, eu tento esquecer, todos os dias. Não consegui contar, muito menos para mamãe. Olhar para a recém-nascida não foi po..., segurar sua mãozinha, beijar sua testa; não, não consegui escolher um nome para ela. Nem lhe oferecer o meu.
Há dias não consigo dormir. Agora só me resta uma noite com segredos. A partir de amanhã, uma vez por mês, minha mãe poderá vir me visitar. Uma vez por mês, pelo menos para ela, voltarei a ser a...
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SOBRE A AUTORA
Cintia Brasileiro nasceu no interior de Minas Gerais. Mora em Araçatuba/SP, é redatora publicitária e mediadora de leitura. Pesquisa literatura feminina brasileira desde 2011. Lançou de forma independente seu primeiro livro infantil "Versinhos Doces" em outubro de 2021. Acredita que os livros e a escrita libertam.