Roman noir, de Rita Dionísio

Roman noir, de Rita Dionísio

Acordou com dor dilacerante. A sensação era a de que uma faca estivesse ferindo o seu âmago, separando o coração do restante do seu corpo. Afastou as escamas espessas das pálpebras com tardias e robustas piscadas. Mexeu os braços. Depois as pernas. Doía demais!... O que acontecera? Virou-se lentamente e com dificuldade para o lado direito. Depois, para o esquerdo. Teve a sensação de que não dormira na própria cama. Piscou novamente os olhos – agora, com mais força. Por entre as sombras que despencavam do teto, vislumbrou um perfil, de costas, de alguém que imaginou conhecer. Parecia distraído. Devia estar sonhando! Como chegara até ali? Que lugar era aquele? Que paredes eram aquelas? E aquele teto?... Aquele cheiro decadente?... E o que ele estaria fazendo ali, bem na frente dela? Esforçou-se, mas se lembrou apenas de que saíra de casa, sozinha, por volta das oito e se dirigia ao trabalho. Retomando lentamente a consciência, firmou os olhos no perfil que antes divisara: era mesmo ele! Não o confundiria com outra pessoa, certamente!  Meu Deus! Com a consciência, foi voltando também a forte dor do lado esquerdo, na altura do cotovelo. Tocou o peito. Seu soutien parecia rasgado... ou cortado. Logo esta peça de que tanto gosto! pensou. Sentiu a mão úmida. Levantou-a e viu que parecia vermelha. A cor de que mais gosto. Lembrou-se do vestido midi de seda escarlate que usara no jantar de quarenta anos, compondo o look com a sandália dourada de salto fino. Que encontro! Aqueles drinks, o buffet, o espaço decorado, as músicas festivas, os abraços...  E aquela fotografia no porta-retratos do aparador ficou perfeita – orgulhou-se. Lembrou-se dos tons de vermelho que projetara para a capa do seu novo livro, roman noir quase pronto. Lembrou-se da bolsa vermelha LV que comprara na viagem a Nova Iorque dois anos antes, para comemorar os 15 anos da única filha. Ensaiou um riso tímido – logo arremetido pela ânsia dolente –, lembrando-se dos projetos para a próxima viagem: Grécia. A dor piorou. Não sabia há quanto tempo estava ali. Lembrou-se da história de amor e desejo que vivera com ele, doce pai de sua filha. O projeto da casa, ponto a ponto. O demorado financiamento, ainda não quitado... as viagens surpreendentes, depois de terem alcançado uma certa estabilidade...  as noites quentes, o seu domínio num crescendo avassalador! Não conseguia ouvir nada. Não sabia se havia som naquele lugar. Mais dor. Olhou novamente o perfil, que agora se virara e a olhava com sádico prazer. Apontou a comprida lâmina para ela. Mostrou-lhe a ponta manchada de vermelho-marrom-escuro. Ela fez um movimento para levantar-se. Foi impedida por um golpe derradeiro desferido em sua face. 

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SOBRE A AUTORA

Professora na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Doutora em Literatura. Desenvolve o projeto de pesquisa "História cultural de mulheres escritoras: vida e obra de Alexina de Magalhães Pinto (1869-1921)", com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais/FAPEMIG, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG como estágio pós-doutoral,  sob supervisão da Professora Constância Lima Duarte, tendo como supervisora no exterior a Professora Isabel Maria da Cruz Lousada, do CICS.NOVA-Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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1 comentário

Que belo texto! Magnífico!

Fábio Gonçalves

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