Reflexões sobre trabalho ou porque eu não falo sobre isso com conhecidos
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E nem eles me perguntam
Por Lara Torres
Quando entrei na faculdade de jornalismo, há treze anos, meu desejo não era exatamente me tornar produtora cultural. Eu tinha a ânsia de escrever, era só o que eu sabia com 18 anos. Não considerava possível ser escritora, o que na minha concepção era uma dádiva concedida a escolhidos, certamente não a mim, criatura mediana, crescida em uma cidadezinha suspensa no tempo e cheirando à laranja. Escolhi, então, estudar jornalismo pela possibilidade de escrever sobre o que me interessava: arte e literatura.
No meu primeiro ano, porém, a minha turma - e boa parte dos jornalistas do país - se deparou com uma desagradrável surpresa: a derrubada do diploma para o exercício da profissão. Em paralelo, chegava outra avalanche que em pouco tempo soterraria os veículos de comunicação tradicionais: a mudança de plataforma do impresso para o digital. Para resumir a história, o que vimos em poucos anos foram revistas e jornais fechando, demissões em massa, pejotização e a precarização do trabalho. Foi nesse contexto que estreei no mercado.
Durante dois anos, trabalhei como freelancer para sites e pequenas empresas. Até que uma amiga recém saída da revista Exame recebeu um convite para participar do processo seletivo da área de comunicação interna de uma multinacional de telecomunicações; convite que ela negou, mas sabendo que eu precisava trabalhar, indicou o meu nome. Fiz o processo e passei. Sou grata a essa amiga até hoje. Para o bem e para o mal, minha ida para São Paulo e os anos que vivi lá foram um divisor de águas.
Considero essa experiência emblemática do que seria a minha curta trajetória corporativa. O prédio fica até hoje na Vila Olímpia, um dos bairros executivos mais ricos e brancos de São Paulo. Nos dois andares que o escritório ocupava havia só quatro pessoas negras. A Maria*, minha única amiga na empresa, que trabalhava na copa, um rapaz no setor de serviços, uma moça muito jovem na limpeza e um senhor na segurança. Não havia nenhuma pessoa não-branca ocupando um alto cargo executivo, a despeito das campanhas de publicidade com atores negros e latinos que produziam a rodo.
Meu trabalho consistia em elaborar uma newsletter semanal e comunicados institucionais para os funcionários, e encontrar uma mínima brecha na agenda dos meus superiores para aprovar cada linha do que eu escrevia. Era comum passar um dia todo de trabalho aguardando para aprovar quatro linhas de um comunicado sobre a data de manutenção da rede ou a limpeza das mesas. Nada, absolutamente nada, era confiado a mim, nem as mensagens mais triviais.
Aprovar a newsletter era de longe o maior desafio. Eu escrevia semanalmente cinco ou seis textos curtos sobre o que estava sendo desenvolvido em cada setor da empresa, do marketing ao design, os lançamentos de smartphone, promoções para funcionários, eventos, etc. Era para ser simples. Banal, até. Mas toda sexta-feira iniciava um processo torturante de aprovações em que cada textinho era editado:
1. pelo gerente da comunicação, João*, meu superior direto;
2. a diretora Ana*, a quem ambos respondíamos;
3. o diretor do setor ao qual a notícia se referia;
4. a diretora do RH,
em um looping que, em geral, consistia em trocar palavras sinônimas e a ordem das frases de acordo com o gosto pessoal de cada um.
O uso de palavras consideradas sofisticadas era desencorajado sob o argumento de que os funcionários “não iriam entender”, um franco desmerecimento da capacidade intelectual dos colaboradores. Nesse movimento, era comum que eu saísse às oito ou nove horas da noite apenas à espera de um OK, pode enviar. O antropólogo David Graeber, na obra "Bullshit jobs: a theory", fala sobre os trabalhos esvaziados de significado, uma das características do sistema capitalista, leitura que recomendo muito a quem se interessa pelo tema.
Não era só a hierarquização e a desconfiança que fabricavam um clima opressivo, mas o próprio ambiente corporativo e a relação com essas duas pessoas, João e Ana, que concentrava uma série de abusos. Ana, por exemplo, não se virava ou parava o que estava fazendo para olhar para mim quando eu falava. Os comentários deles sobre o meu trabalho reiteravam o quanto o que eu produzia era insuficiente e imperfeito. Havia momentos de simpatia sim, mas em geral, eles eram sucedidos de algum pedido, como encomendar seu almoço.
Uma vez, perto do Natal, Ana apareceu animada puxando conversa. Estranhei a horizontalidade. Ela então começou a me contar sobre um jantar de família no seu final de semana, da visita de parentes e do amigo secreto que fizeram para trocar presentes no Natal. Eu não entendi para onde aquele papo estava indo, era incomum. “Olhe que cabeça a minha. Tirei o amigo secreto para o meu pai e perdi o papel, agora não me lembro quem é”, disse. O inacreditável veio em seguida. “Vou te passar o telefone do pessoal, você liga para cada um e descobre quem é o amigo secreto dele?”. Senti afundar no carpete.
Com o tempo, o trabalho foi se tornando um irradiador de ansiedade, que virou aos poucos sintomas físicos, como tremedeira, palpitações, dores de estômago. Vendo minha cara de doente, João chegou a debochar com certa insistência. "Parece que um caminhão te atropelou. Você está sem maquiagem?".
Mas as questões que para mim eram desagradáveis não são equiparáveis àquelas que a funcionária da limpeza ou Maria tinham que lidar, muito mais graves e de outro cunho. Ou a menor aprendiz do meu setor, uma jovem preta e periférica de 14 anos, que pouco depois da minha chegada foi transferida em razão de uma queixa da diretora. O motivo: ela mastigava chicletes de boca aberta.
Ana a acusou, em um sermão público, de não ter postura para trabalhar em uma empresa como aquela, mandou que cuspisse o chicletes e emendou que precisava usar roupas melhores, não aquelas blusinhas que mostravam o umbigo. Uma cena absurda que jamais teria acontecido se fosse uma garota branca. Nesse caso o comportamento seria outro, certamente uma suave e comedida sugestão entre quatro portas.
Outro caso, desta vez com Maria.
Periodicamente, o CEO da empresa fazia uma reunião com toda a diretoria. Maria, uma senhora que trabalhava o dia todo de pé, nesses dias ia e vinha da copa, de um andar para o outro, com o carrinho de chá tilintando de xícaras, pratos, sucos, petiscos, etc. Certa manhã ela estava nessa missão. Mas na hora do almoço, quando a gente costumava se encontrar para comer junto ou conversar, não a encontrei. Só voltei a vê-la no final da tarde, quando me contou o que tinha acontecido.
Ao servir o CEO, viu que o tubo de adoçante recém-aberto não tinha furo. Com sua imensa simpatia, Maria ofereceu a solução mais prática, furar o tubo com um garfo ou uma faca, não me lembro agora. Mas ao sair da sala ela foi repreendida por sua supervisora, com o argumento de que o incidente “constrangera” o CEO. Mandaram-na então ao estoque para conferir, adoçante por adoçante, se todos os tubos tinham furo.
A humilhação doeu nela e em mim. Mais ainda porque, sendo uma mulher negra naquele ambiente, nós duas sabíamos que não era a primeira e nem seria a última vez.
As experiências seguintes que tive no mercado corporativo não foram melhores: uma startup descolada com discurso progressista, que contratava jovens pagando dois salários mínimos para que produzissem conteúdo digital quantas horas o dia permitisse; e uma prestadora de serviços audiovisuais. Nessa, eu era a única mulher em uma equipe com cinco homens heterossexuais.
Essa última experiência, como a primeira, foi muito significativa no sentido de moldar a visão política e feminista que tenho hoje. Um lugar onde se ouvia comentários sexistas sobre cada mulher que entrava pela porta e o comportamento sexual predador dos homens da equipe era abertamente ovacionado. Me lembro de uma reunião específica em que ouvimos de um colega de equipe que a cliente que nos visitara mais cedo “estava para parir, mas em breve já daria pra comer”. Os presentes - todos homens - validaram o comportamento, ou rindo ou permanecendo em silêncio.
Havia também um caso surpreendente de acobertamento dos assédios morais que um funcionário praticava com as mulheres. Era sempre desrespeitoso e grosseiro, somente com elas. Mas, apesar das reclamações abertas contra ele, vindas de diferentes funcionárias, o indivíduo não apenas permaneceu blindado, como também foi promovido. No quadro societário havia uma mulher que sabia dos problemas e parecia estar mais atenta à cultura interna da empresa, pelo menos no discurso, mas a prática se revelou bem diferente. O que mostra que nem sempre mulheres em posição de poder que se consideram feministas têm o real interesse em interferir na realidade de outras, especialmente as que estão abaixo na hierarquia. O feminismo liberal sempre esteve limitado às próprias amarras e ligado à exploração, por isso é preciso ter cuidado com discursos progressistas nesses ambientes, especialmente quando vêm dos patrões.
Ontem, eu rolava o feed do Instagram quando me deparei com o print de um e-mail recebido pela antropóloga Izabel Accioly, cujo trabalho admiro e acompanho. No texto, uma empresa dispensava os serviços dela, que é especialista em letramento racial, por causa da cor da sua pele. Vou reproduzir o print abaixo.
Print do e-mail recebido pela antropóloga Izabel Accioly, que ela compartilhou no seu Instagram @afroantropologa.
De acordo com eles, em se tratar de uma palestra sobre letramento racial para um público branco, consideraram melhor contratar também uma pessoa branca. Imagino o sentimento de Izabel diante dessa mensagem. Pessoalmente, desejo que um dia essa pessoa chegue ao livro de Cida Bento, “O pacto da branquitude”.
Gostaria agora de voltar à questão central deste texto.
A cultura de trabalho dentro da maioria das empresas nunca foi saudável ou humana. Estamos falando de abusos, assédio, racismo e exploração, pilares que afinal são sustentáculos do capitalismo.
Decidi sair do mercado corporativo e me tornar autônoma para ficar mais próxima do meu desejo inicial, que era trabalhar com cultura, mas também para tentar fugir ao menos um pouco da lógica extrativista. Consegui fazer essa transição depois de uma especialização em Gestão de Projetos Culturais.
Minha escolha sempre pareceu duvidosa para muitas pessoas ao meu redor, estou ciente disso. Quando conhecidos te perguntam “mas você consegue pagar as contas com isso” ou “mas qual é seu trabalho de verdade”, ou então, quando você comenta que está trabalhando bastante nas últimas semanas, e soltam um enfático “mas graças a Deus, não é?”, como se você passasse a maior parte do tempo sendo um desocupado, bem, dá para notar.
Existe uma falsa percepção, muito recorrente, de que trabalhar com cultura não é trabalhar de verdade. Depois da transição de carreira, comecei a notar um visível desconforto quando me perguntam sobre o que ando fazendo, por ser diferente do que as pessoas entendem por trabalho (alguns amigos e familiares simplesmente evitam tocar no assunto).
Minha demanda de trabalho varia, algumas vezes há muita, outras vezes, nenhuma. Com isso, vivo épocas boas em que sinto estar cumprindo um propósito ao proporcionar algum tipo de reflexão e prazer às pessoas, e sou remunerada dignamente. Em outras, há uma estiagem. É preciso muita organização financeira. O desconforto talvez venha dessa sensação de insegurança do trabalho autônomo e, em particular, do setor cultural.
O que me parece maluco é que viver ou presenciar situações no trabalho como as que descrevi seja mais naturalizado e aceitável, contanto que se tenha um salário fixo (nem vou mencionar carteira assinada, esse direito em extinção).
O pensamento de que cultura e economia, cultura e carreira, cultura e trabalho são incompatíveis é errôneo. Em 2019, o setor cultural empregava 5,5 milhões de pessoas, o correspondente a 5,8% do total da população, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2019. Trabalhei na produção de teatro durante durante algum tempo e pessoas que jogam pedras na Lei Rouanet ficariam chocadas com a quantidade de profissionais empregados em uma peça. Estamos falando, para além dos atores, de técnicos de luz, de som e de vídeo, transportadores, figurinista, cenógrafo, iluminador, preparadores de corpo e de voz, músicos, diretor, assistentes, produtores, designer, assessor de imprensa, e a lista continua, se lembrarmos que as pessoas se alimentam, usam o transporte público, se hospedam em hoteis, etc, ou seja, toda uma cadeia de serviços é movimentada. O mercado editorial funciona da mesma forma. Um livro é apenas o resultado material de um trabalho coletivo.
O pensamento por trás do vilipêndio das profissões criativas - atores, escritores, músicos, artistas plásticos, técnicos, produtores, etc - é o mesmo que precariza esse setor; que impede que a cultura seja encarada como um direito humano, e como tal, tratada politicamente como prioridade; que desobriga políticos de destinar recursos e democratizar o seu acesso. É também parte do mesmo mecanismo que afasta a arte das pessoas, especialmente as de classe econômica mais baixa, já que a chance de que um trabalho criativo leve o sustento até suas mesas é mínima, tornando o viver de arte ou uma luta ou um privilégio.
Eu, que já não falava de trabalho quando comunicadora sob o risco de afogar o interlocutor na mesma amargura que eu vivia, agora continuo não falando para evitar um silêncio esquisito ou comentários de dúvida. Ou, no caso dos meus poucos amigos de sucesso (dentro da visão tradicional de sucesso), o fatídico olhar de “você está brincando com a sua vida”.
Confesso que brincar com a vida me soa um projeto belíssimo.
Enquanto eu puder trabalhar em conjunto com outras mulheres, ajudando a encontrar suas vozes artísticas, puder criar oportunidades de trabalho e de remuneração digna para escritoras, pesquisadoras e pensadoras na minha empresa minúscula, colaborando para disseminar a literatura e a arte, bem, então brincar com a vida continuará valendo a pena.
*os nomes reais das pessoas foram trocados.