Quando tudo o que resta é menos que nada, de Lara Sant'Anna
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Estou debaixo do chuveiro enquanto penso no tempo. Massageando a cabeça com shampoo, me perco entre a espuma, a materialidade impressa em tudo que fazemos e as linhas que vão sendo mentalmente escritas, muito mais fáceis de serem construídas do que aquelas que vão acabar no papel. Mesmo assim o plano é certo, já já abro o caderno, o bloco de notas no celular, qualquer coisa para registrar o pensamento. Mas porque a vida é tinhosa - e é para ser assim-, quando saio do banho o tempo está curto e, entre colocar a roupa e juntar tudo o que preciso para sair, anotar a ideia é a última coisa que me lembro. Só lá pelo final do dia, sentada na mesa após o jantar, lembro do banho e lembro da ideia. Era uma ideia boa, excelente, tenho certeza. Mas qual era mesmo?
Da genialidade, apenas a lembrança. O conteúdo fatalmente minado junto com a espuma do shampoo.
Agora o computador está aberto e a tela em branco é preenchida apenas por um pequeno traço preto que insiste em piscar, como se para lembrar que ele está ali para fazer letras aparecerem. Mas não aparecem. Estou obcecada pela ideia que escorreu pelo ralo e me concentro vasculhando a memória. Vou até o banheiro e entro no boxe, estratégia que às vezes funciona, mas não hoje. Meu olhar acaba no ralo para onde certamente a ideia se foi.
Volto para a mesa e reparo a bagunça. Eu gosto de reparar. Ela entrega, vez ou outra, vestígios de mim. Dois cadernos abertos lembram que tentei vasculhar alguma memória. Um jornal independente que acabei de assinar se encontra dobrado ao meio, em cima de uma caixa de madeira, em frente a uma coleção de pequenos cadernos. Tem uns três livros empilhados no canto esquerdo, que já li, mas só voltam para a estante depois que eu escrever sobre eles. É uma mania - dentre várias - admito. Nem que seja um parágrafo escrito no papel e colocado despretensiosamente dentro do livro. Vi isso uma vez em uma livraria e adorei. Copiei. Olhando para esses livros agora percebo que tem um que não é meu. Emprestado há quase seis meses, que vergonha, mas só quero devolver depois que fizer as anotações. O que juro, coloco como meta na agenda, por escrito, toda semana. Tem coisas que a gente protela. Casos inexplicáveis.
Aliás, eu gosto de emprestar livros, mas sou daquelas que cobra a devolução, principalmente quando suspeito que o empréstimo se encontra esquecido naqueles planos de leitura que a pessoa nunca leva adiante. Igual ao texto que tenho que escrever, você deve estar pensando, não é? Talvez. De todo modo, quando quero meu livro de volta não preciso mentir, mas confesso que às vezes invento uma história, digo que uma amiga me pediu, que estou devendo esse empréstimo. Digo para mim mesma que é por amor à ficção, mas suspeito que também pode ser só uma desculpa para uma pequena mentira.
A dona do livro não me pediu de volta, mesmo quando vez ou outra a encontro - e a encontro muito. Mas confesso a verdade e faço promessas. Coloco-o no topo dos livros, preciso devolver, é fato. Estou neste momento pegando meu lápis, escrevendo na agenda no dia de amanhã: escrever texto sobre o livro ‘x’, meta do feriado. De amanhã não passa.
Tenho que dizer que esta mesa é um absoluto mistério. Fica colada a uma parede terracota que eu adoro e que, vez ou outra, me distrai pelo simples fato de ser encantadora. Mas o mistério mesmo é a bagunça. Juro que a arrumo todos os dias. Criei um esquema em que os livros que uso rotineiramente ficam nas estantes em cima da mesa, e me disciplino a colocá-los no lugar logo após o uso. Sigo todo um plano para mantê-la arrumada, porque dizem que a organização de fora reflete a organização de dentro. Dentro, óbvio, da minha cabeça. Da nossa. E assim insisto nessa meta, na esperança de organizar também os meus assuntos, para que não me deixem, para que não escorram pelo ralo.
Olho para a página em branco. O traço preto que pisca. Tique-taque. Ele não faz barulho, mas eu ouço. Tique-taque, assim como os ponteiros do relógio, sempre passando enquanto eu olho para o branco e o branco me olha, imutável. É então que lembro de alguma frase com ares de coach, que diz algo como “desistir também é um ato de coragem”. Escrevo isso e me perco na dúvida se um coach diria essa frase. Por que não, penso, fechando o computador e pegando o livro para beber alguns assuntos. Quem sabe desenho algo no branco mais tarde.
SOBRE A AUTORA
Lara Sant'Anna possui formação acadêmica em Direito. Fez um mestrado e publicou sua dissertação através da Lumen Juris. Em 2015, iniciou um doutorado na Universidade de Coimbra/PT. Dedicou-se durante alguns anos ao ensino universitário e, em 2018, começou a ensinar Ashtanga Yoga, iniciando um processo de transição que culminou na abertura de uma escola e na mudança de profissão. Apaixonada por literatura desde sempre, tem um clube de leitura desde 2017. Escreve crônicas regularmente e, desde 2023, mantém uma newsletter no Substack [larafbsantanna.substack.com].
Da genialidade, apenas a lembrança. O conteúdo fatalmente minado junto com a espuma do shampoo.
Agora o computador está aberto e a tela em branco é preenchida apenas por um pequeno traço preto que insiste em piscar, como se para lembrar que ele está ali para fazer letras aparecerem. Mas não aparecem. Estou obcecada pela ideia que escorreu pelo ralo e me concentro vasculhando a memória. Vou até o banheiro e entro no boxe, estratégia que às vezes funciona, mas não hoje. Meu olhar acaba no ralo para onde certamente a ideia se foi.
Volto para a mesa e reparo a bagunça. Eu gosto de reparar. Ela entrega, vez ou outra, vestígios de mim. Dois cadernos abertos lembram que tentei vasculhar alguma memória. Um jornal independente que acabei de assinar se encontra dobrado ao meio, em cima de uma caixa de madeira, em frente a uma coleção de pequenos cadernos. Tem uns três livros empilhados no canto esquerdo, que já li, mas só voltam para a estante depois que eu escrever sobre eles. É uma mania - dentre várias - admito. Nem que seja um parágrafo escrito no papel e colocado despretensiosamente dentro do livro. Vi isso uma vez em uma livraria e adorei. Copiei. Olhando para esses livros agora percebo que tem um que não é meu. Emprestado há quase seis meses, que vergonha, mas só quero devolver depois que fizer as anotações. O que juro, coloco como meta na agenda, por escrito, toda semana. Tem coisas que a gente protela. Casos inexplicáveis.
Aliás, eu gosto de emprestar livros, mas sou daquelas que cobra a devolução, principalmente quando suspeito que o empréstimo se encontra esquecido naqueles planos de leitura que a pessoa nunca leva adiante. Igual ao texto que tenho que escrever, você deve estar pensando, não é? Talvez. De todo modo, quando quero meu livro de volta não preciso mentir, mas confesso que às vezes invento uma história, digo que uma amiga me pediu, que estou devendo esse empréstimo. Digo para mim mesma que é por amor à ficção, mas suspeito que também pode ser só uma desculpa para uma pequena mentira.
A dona do livro não me pediu de volta, mesmo quando vez ou outra a encontro - e a encontro muito. Mas confesso a verdade e faço promessas. Coloco-o no topo dos livros, preciso devolver, é fato. Estou neste momento pegando meu lápis, escrevendo na agenda no dia de amanhã: escrever texto sobre o livro ‘x’, meta do feriado. De amanhã não passa.
Tenho que dizer que esta mesa é um absoluto mistério. Fica colada a uma parede terracota que eu adoro e que, vez ou outra, me distrai pelo simples fato de ser encantadora. Mas o mistério mesmo é a bagunça. Juro que a arrumo todos os dias. Criei um esquema em que os livros que uso rotineiramente ficam nas estantes em cima da mesa, e me disciplino a colocá-los no lugar logo após o uso. Sigo todo um plano para mantê-la arrumada, porque dizem que a organização de fora reflete a organização de dentro. Dentro, óbvio, da minha cabeça. Da nossa. E assim insisto nessa meta, na esperança de organizar também os meus assuntos, para que não me deixem, para que não escorram pelo ralo.
Olho para a página em branco. O traço preto que pisca. Tique-taque. Ele não faz barulho, mas eu ouço. Tique-taque, assim como os ponteiros do relógio, sempre passando enquanto eu olho para o branco e o branco me olha, imutável. É então que lembro de alguma frase com ares de coach, que diz algo como “desistir também é um ato de coragem”. Escrevo isso e me perco na dúvida se um coach diria essa frase. Por que não, penso, fechando o computador e pegando o livro para beber alguns assuntos. Quem sabe desenho algo no branco mais tarde.
SOBRE A AUTORA
Lara Sant'Anna possui formação acadêmica em Direito. Fez um mestrado e publicou sua dissertação através da Lumen Juris. Em 2015, iniciou um doutorado na Universidade de Coimbra/PT. Dedicou-se durante alguns anos ao ensino universitário e, em 2018, começou a ensinar Ashtanga Yoga, iniciando um processo de transição que culminou na abertura de uma escola e na mudança de profissão. Apaixonada por literatura desde sempre, tem um clube de leitura desde 2017. Escreve crônicas regularmente e, desde 2023, mantém uma newsletter no Substack [larafbsantanna.substack.com].
3 comentários
Quantas ideias surgem nos espaços mais inusitados e inapropriados para que se materializem no papel. O banheiro é um clássico: do momento do banho até o de lavar, quando a mão cheia de sabão, xampu ou o que seja não permite ou não alcança o papel e caneta. No carro também, dirigindo, impossível parar e as ideias livres pela janela, acompanhando o vento… a vida é mesmo tinhosa kkkk amei o texto
Adorei ler esse texto, quando a falta de assunto vira o próprio assunto. Revelação dos desafios de quem gosta de escrever. Valeu Lara !!!
Belo texto do cotidiano.