Depois que me apropriei da ideia de memória (que ela é sempre uma releitura), o novo modo de entendê-la me deixou livre para imaginar. Entre tantas lembranças/memórias, tenho uma especial. Um vidro de licor na minha cristaleira, nada moderno, eu sei. Talvez uma tentativa de guardar o tempo.
Fato é que esse vidro está comigo desde que minha mãe morreu e eu decidi que ele seria minha herança. Por isso, demanda um cuidado especial. Quando me mudo de casa tenho um zelo diferenciado com essa relíquia de família, não permito que outra pessoa a transporte, carrego em minhas mãos; durante o trajeto e no furdunço da mudança ele está sob minha responsabilidade.
Sobre essas relíquias que não podem ter seu valor mensurado, gosto de pensar que cada pessoa deveria ter a sua: um lenço de cabelo, um vaso de flores, um broche da avó, um relicário, um binóculo. Minha amiga ontem postou sobre um prato-herança de sua mãe, em pedaços. Era uma parte dela, da sua história, pequenos cacos que compõem o todo. Poderiam ser colados?
Olhar para aquela postagem me fez relembrar o dia em que outra coisa havia se partido. Era o dia seguinte das eleições de 2018. Mandei uma mensagem pra ela e disse que estava lendo Mario Quintana, um dos meus poetas favoritos (preciso de poesia em momentos difíceis). Estávamos tristes, algo estava se partindo de forma definitiva. O prato-relíquia da minha amiga partiu em 28/12/2022. Mas nosso país se partiu em quatro anos, uma dor ardida de queimadura da Amazônia, cortes sangrando a cultura, línguas felinas açoitando mulheres, negros e indígenas. Ministros inaptos rasgando o tecido já frágil da nossa educação. Sufocamento de milhares de brasileiros que podiam não ter morrido. Dor de fome que comia a carne de muitos brasileiros.
O tempo da poesia do Quintana não chegava, "...quando vejo já é 2023..." demorava. Agora chegou, com esperança. Porque tenho memórias, são minhas, o que guardei, é a minha releitura. Ou são fatos?
Não me tomem por inocente, lembro também dos erros, da corrupção, sei que nossa história é cheia de rupturas, que somos fruto de exploração, que sofremos extermínios, sei dos golpes, dos porões da ditadura, de acordos nefastos. Sei do desmonte de mais de quinhentos anos e das lutas que nos aguardam.
Mas, por hoje, me dou o direito de relembrar os pretos nas universidades, os programas de distribuição de renda, a fome zero, a ascensão social, a diminuição da desigualdade, o pleno emprego, a proteção do meio ambiente, os pobres viajando de avião, o respeito internacional, a distribuição de livros.
Na minha imaginação todas as pessoas poderiam ter uma relíquia. Como em uma narrativa ficcional, durante a posse, o Presidente Lula conta a história da caneta que ele ganhou de um militante e guardou para assinar a posse. Não aconteceu nas outras duas vezes, estava destinada a ser nessa o retorno da esperança. A história já seria bonita se fosse inventada, mas era real. Uma memória verdadeira (sei que estou sendo contraditória), mas para recontar a história de um país não há espaço para reinvenções. Na história, memórias são fatos, e por mais que eu goste de imaginar, são eles que compõem minha memória histórica. Deixo para brincar e fazer releituras nas minhas lembranças particulares.
Parafraseando Quintana, quando se vê já será 2026, sejamos esperançosos com o tempo que temos. Nunca mais o teremos. Vamos juntos, agora, colar o Brasil. Se quatro anos não for suficiente, ainda teremos as partes de um todo, guardadas, para que em algum outro tempo, guiados pela democracia, possamos colar o nosso país.
*Vilma Ribeiro tem 54 anos e mora em São Paulo. Alagoana de nascimento e de coração. É pedagoga, psicóloga clínica, especialista em Literatura para a infância e escritora. Atua como pesquisadora no grupo Filosofia e Espiritualidade em Saúde da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). É autora dos livros Nós quatro eu e ela nós sem ela (2019) e ,o dia em que não morri (2022), lançados de forma independente.
1 comentário
Atualíssimo.
O texto de Vilma Ribeiro me faz sentir a paz de estar do lado verdadeiro da história.