Papo na sala #5 com Silvana Tavano
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Por Carla Guerson
Carla: Silvana, a primeira pergunta que eu tenho é sobre ser uma escritora versátil, que escreve para diferentes públicos. Como você encara essas múltiplas possibilidades de público leitor? Qual é, para você, a principal diferença entre ser uma escritora de livros infantis e de livros para adultos (se é que essa diferença existe)?
Silvana: Sempre me perguntam se escrever para crianças é mais fácil ou mais difícil, e claro, a literatura infantil tem suas especificidades, mas quando a gente para pra pensar nesse adjetivo – “infantil”— essa questão da diferença entre os gêneros perde o sentido. Porque infantil não é sinônimo de infância nem de criança. Infantil é um adjetivo que qualifica um modo de ser, de sentir, de pensar o mundo, um olhar que nasce na infância e cresce com a gente. O infantil nos constitui, ultrapassa a infância, fica com a gente em todas as idades. E nos livros que escrevi, sempre tentei condensar camadas de sentidos que os leitores vão percebendo a cada idade.
Desde menina escrevo contos e narrativas “para adultos”, mas quando comecei a trabalhar como jornalista aposentei o sonho de ser escritora. Muitos anos mais tarde, e quase por acaso, comecei a escrever para crianças; com a publicação do primeiro livro, veio o segundo, o terceiro, e assim virei escritora de livros “infantis”, mas a verdade é que nunca deixei de escrever “para adultos”, e depois de todo esse tempo, publiquei um primeiro romance.
Você pergunta sobre as múltiplas possibilidades de público leitor, e isso me faz pensar nas múltiplas possibilidades de criação – pra mim, o processo criativo é um mistério lindo, e conto brevemente uma experiência recente pra me fazer entender: tempos atrás, fui pra cama pensando numa ideia que queria desenvolver no novo romance em que venho trabalhando, e de repente me peguei triste, com a sensação de que nunca mais escreveria para os pequenos. Adormeci pensando nisso e... Na manhã seguinte, a tal ideia que entraria no livro “adulto” reapareceu numa história para crianças. Então é isso, uma mesma ideia pode disparar narrativas muito diferentes – muda a forma, mas a ideia está ali.
Carla: Eu acho isso fenomenal e me sinto muito atraída por tanta liberdade na criação. Acho que deve ser parecido com a liberdade de quem fala várias línguas, de quem consegue se comunicar em vários idiomas: quase um superpoder da linguagem.
Eu brinco um pouco transitando entre poesia e prosa, contos e narrativas longas (vou publicar meu primeiro romance ano que vem). Mas tem uma coisa que observo: mesmo trocando as narrativas, as formas, muitas vezes o tema se repete. Percebo isso em outros escritores, também: os mesmos temas, de formas diferentes, em diferentes obras. Uma espécie de obsessão. Isso ocorre com você? Existe algum tema que te "persegue"?
Silvana: Custei até me dar conta de que meus temas se repetem, e lembro da maravilhosa Rosa Montero no “A Louca da Casa”, que disse mais ou menos isso. Na verdade, ela cita Isaiah Berlin, e diz que há dois tipos de escritores: os ouriços e as raposas. "Os primeiros se enrolam feito um carretel e estão sempre girando em torno do mesmo tema, enquanto as raposas são animaizinhos itinerantes que avançam sem parar por diversos assuntos". Eu, ouriço, assino embaixo rss.
Lá pelas tantas, percebi em muitos livros o mesmo tema: o tempo, os ciclos, o início e o fim de todas as coisas. Para citar só alguns, esses são os motes dos infantis "Como Começa?", "Longe", "O Mistério do Tempo" e "Psssssssssssssiu!"; do juvenil, "E No Fim Tudo Recomeça de Outro Jeito"; e do romance, "O Último Sábado de Julho Amanhece Quieto". E no novo romance, que vai por caminhos totalmente diferentes de tudo o que escrevi até hoje, lá estão eles: o silêncio, a memória, o tempo.
Carla: Li uma matéria na revista 451 que você falava sobre a modificação de trechos ou verbetes tidos como inadequados na literatura infantil. Confesso que fui uma mãe que lia os livros para as crianças trocando eu mesma as palavras que achava inadequadas quando elas ainda não sabiam ler. Apenas mais pra frente passei a explicar o contexto.
Mas ler a sua matéria me fez pensar sobre a importância de ensinarmos e aprendermos sobre contextos, períodos históricos, mudanças na linguagem. A estarmos atentos e não "protegidos". Ao mesmo tempo, penso que não podemos ficar presos a esse molde antigo de fazer literatura. É preciso evoluir. Talvez seja necessário conhecer o passado pra entender as necessidades do presente.
No livro correio literário, a Wislawa Szymborska responde a uma escritora que escrevia poemas "retrógrados": a condição é que o poeta fale a língua de sua época. Na sua opinião, qual seria a linguagem da nossa época? Como responder às demandas da nossa época sem cair na armadilha de ter que "revisar" ou invalidar os textos do passado?
Silvana: Acho que muitas mães já se viram nessa situação que você comenta; seja pelo impulso de proteger ou apenas para “traduzir” uma palavra ou uma situação que talvez a criança ainda não consiga entender, enfim, a mãe-leitora até pode adaptar uma ou outra palavra ou passagem da história. O que é bem diferente das alterações que vêm sendo feitas por editores – o nome disso é censura. Um dia a criança vai ler a história que a mãe contava, e é importante que o texto original esteja lá, impresso, e que, aí sim, com ajuda de uma mediação, ela entenda o contexto, as circunstâncias daquele autor e do período em que a história foi escrita. Creio que é desse modo que a gente pode formar leitores críticos, capazes de refletir e tirar conclusões. O que vem sendo feito é um apagamento de períodos da história do mundo e das biografias de seus autores. Como você disse, é preciso conhecer o passado para entender as questões que continuam ecoando no presente.
Penso que quando Szymborska fala em “língua de sua época”, ela se refere a pensar/escrever politicamente sobre o tempo em que se vive – uma história de amor, por exemplo, será diferente durante uma guerra e dentro de um contexto religioso fundamentalista. Há o amor e as questões todas ao redor: preconceitos, impossibilidades, medo, esperança.
Sobre a questão da linguagem: os clássicos nos desafiam com um vocabulário rebuscado, frases longas, o lento desenrolar da trama, refletindo épocas em que o tempo transcorria em outra velocidade. Mas quem poderia pensar em revisar ou invalidar Dostoiévski, Tolstói, Proust, Machado, Virginia Wolf, Joyce, Kafka, Shakespeare? A lista é imensa, esses escritores influenciaram gerações e seguem imprescindíveis para quem escreve. Hoje os leitores certamente desconfiam de narradores que se apresentam como deuses oniscientes; nossa época pede um ritmo mais ágil, a linguagem conectando palavras, cenas, imagens e subjetividade ao que se pretende contar. Mas as questões fundamentais estão lá, naqueles escritores – o crime e o castigo, a injustiça e a perplexidade diante de um processo absurdo, o amor entre duas mulheres, famílias infelizes, paixão, ciúme e traição, conquistas e frustrações. É sobre isso que escrevemos (ou tentamos escrever) da forma como todas essas coisas acontecem no nosso mundo, e com as palavras de hoje.
Carla: Me ocorre que isso também é conversar sobre ciclos. Ciclos da literatura, da humanidade, da linguagem. Esse apagamento do antigo pode ser atrelado à nossa dificuldade de lidar com o fim, com as mudanças. É mais fácil anular, aniquilar, do que ter que lidar com um passado "difícil".
No seu livro “O último sábado de julho amanhece quieto”, a personagem Beatriz está passando por um momento peculiar atrelado a esses ciclos: morte e vida. Você foi ousada ao colocá-la lidando ao mesmo tempo com a morte do marido e com o surgimento da nova vida (e da nova Beatriz, já que nasce também uma mãe). Fiquei muito identificada com essa personagem porque penso que, mesmo sem lidar literalmente com a morte (como no caso dela), quando a gente se torna mãe pela primeira vez, a gente passa por um luto enorme da pessoa que foi antes de ser mãe. E pensando agora em como a gente pode ter a tendência de preferir anular ou reescrever o passado ao invés de lidar com ele, acho que isso pode acontecer também na maternidade: quando negamos a filha que fomos (e somos) e prometemos fazer tudo totalmente diferente, ou mesmo quando queremos simplesmente repetir, talvez romantizando as partes que não foram tão legais assim. Encarar a mudança necessária pode ser realmente doloroso.
Sei que você também é mãe. Como é esse processo pra você e como foi a construção dessa personagem? O quanto sua própria experiência como mãe influenciou no que você colocou no corpo e na voz de Beatriz?
Silvana: É interessante essa conexão que você faz trazendo o começo da nossa conversa pra cá, e pensando na experiência da maternidade (por mais que essa experiência seja única em cada mulher), acho que sim, a gravidez nos coloca em outro lugar − mesmo que ainda sejamos filhas, estamos a caminho de nos tornarmos mães. Junto com o bebê, vai se formando o desejo – quase uma determinação − de não repetir o script anterior ou, ao contrário, e com a mesma certeza, a intenção de partir da nossa relação com nossas mães, aprimorando o que não foi tão bom assim. Mas assim que um bebê sai do útero e é colocado nos nossos braços, de alguma forma já nos damos conta de que essa é uma nova história, com a participação de um novo personagem e com todas as surpresas de um roteiro inédito. Com isso tento dizer que nossos planos de ser uma mãe assim ou assado vão sendo redesenhados a partir desse vínculo novo, o fio que vai se formando entre nós, que já estivemos no papel de filhas, e esse protagonista, que também vai nos definir enquanto mães. No novo script, a gente se pega repetindo o que nossas mães faziam, para o bem e para o mal, e isso nos aproxima delas, no sentido de entender porque agiram assim em situações semelhantes. Acho que quando nos tornamos mães, somos obrigadas a lidar com o passado, o presente e o futuro ao mesmo tempo, essa é a mudança, difícil, às vezes dolorida.
O fato é que mesmo fazendo – ou achando que se está fazendo – tudo certo, nós, mães, continuaremos dando pano pra manga nos consultórios de terapia rss. Mas não vejo a primeira gravidez como um “luto” da pessoa que fomos antes − a filha que fomos certamente muda, mas não morre. Isso acontece também com a personagem do romance: já durante a gravidez de Beatriz, começa a se esboçar uma nova relação entre ela-filha e sua mãe.
A minha gravidez foi muito desejada – aconteceu só no segundo casamento, eu tinha 38 anos e já me preparava para adotar uma criança, tinha certeza de que não poderia engravidar. Em comum com a Beatriz, só mesmo o desejo de ser mãe, a ansiedade e a frustração a cada menstruação, a alegria de se descobrir grávida. Infelizmente para a personagem, isso acontece num momento dificílimo; foi diferente pra mim, vivi nove meses de plenitude, nas nuvens, apesar do peso extra rss. Mas por conta do meu tema, queria dar corpo à ideia dos ciclos, falar dos finais e dos recomeços.
A gente vive muitas “mortes” durante a vida: casamentos terminam, carreiras são interrompidas por uma demissão, velhas amizades perdem o sentido ou decepcionam levando a rupturas. Todos esses lutos trazem dor, raiva, culpa, indignação, e a promessa, talvez esperança, de um recomeço − um emaranhado de sentimentos que coloquei no corpo de Beatriz. Uma mulher que vive a perda do companheiro ao mesmo tempo em que carrega uma nova vida me pareceu a personagem perfeita para colocar essa ideia em cena.
Carla: Na sua personagem, a escrita comparece como forma de lidar com essas mudanças. Achei muito bonita a conexão da Beatriz com a escrita poética, me deu a impressão de que a escrita parecia reconectar ela com a “verdadeira” Beatriz, com a sua essência.
Outro dia me perguntaram o que é poesia (pergunta feita para não ser respondida, né?) e depois de muita reflexão (e de não saber responder na hora) cheguei à conclusão de que para mim, hoje, a poesia se conecta a duas palavras: investigação e tentativa. Talvez não só a poesia, mas a escrita em geral. Acho que escrevo na busca de investigar melhor a mim mesma, os outros, o mundo ao meu redor. E acho também que é sempre uma tentativa, já que escrever parece fadado a falhar, na medida em que raramente (talvez nunca) consigo expressar com precisão o que estou tentando dizer.
E para você, o que é a escrita? E qual o papel que ela tem na sua vida?
Silvana: Lembro do comentário de um colega quando mostrei a ele os primeiros trechos do meu romance: como alguém em choque, num luto tão recente, conseguiria escrever tudo isso? Para ele, a escrita da Beatriz soava inverossímil, e me surpreendi porque a minha própria experiência dizia o contrário, as mil vezes em que me vi no olho de um furacão e busquei nas palavras o “chão”, uma forma de aterrissar e entender o que estava acontecendo. É assim num momento traumático e todos os dias, porque escrever, para mim, é a forma de expressar inquietações, de me traduzir, é um caminho de autoconhecimento, ou nas palavras de Flannery O’Connor: “Escrevo para descobrir o que eu sei”. Como você diz: a escrita é uma tentativa de investigar, clarear, organizar o caos do mundo lá fora e do nosso mundo interior. Mas essa investigação não tem ponto final, por isso continuamos buscando palavras que deem conta de tudo. A lindeza desse processo é que a própria insuficiência das palavras nos move a seguir escrevendo.
SOBRE ELAS:
Silvana Tavano nasceu em São Paulo, em 1957, e escreveu mais de 30 livros para crianças e jovens, com títulos publicados na Suécia, Alemanha, Itália, Turquia, Argentina, México, China e Coreia do Sul. Em 2022, obteve o 1º lugar do Prêmio Jabuti na categoria Literatura Infantil, com “Sonhozzz”, e lançou seu primeiro romance – “O Último Sábado de Julho Amanhece Quieto”, pelo selo Autêntica Contemporânea.
Carla Guerson é capixaba, escritora, feminista, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022).