Por Carla Guerson
Carla: Marina, uma das coisas que mais me interessa quando eu converso com escritores é saber do processo criativo. Como surge uma ideia, um personagem? O que serve de inspiração e gatilho para que alguém comece a escrever, a criar uma história? E sempre fico impressionada com a diversidade de respostas. Lendo seus livros, percebo que há uma variedade grande de escolhas, mas que tem algo que se destaca: seus personagens são, na maior parte das vezes, pessoas comuns, sem características extraordinárias. Isso me atrai muito e me deixa ainda mais curiosa. Por isso eu quero saber: como um personagem surge para você? Que tipo de acontecimento / fato / pessoa te desperta a vontade de escrever?
Marina: Eu trabalho a partir de dispositivos diversos de criação. Às vezes é uma imagem, noutras uma atmosfera, uma palavra, uma frase, um close num olhar específico, muito raramente uma ideia de enredo. Um enredo é quase sempre o que menos me movimenta por si mesmo e costuma chegar depois. Tenho ideias de enredos que acho interessantes, mas se não encontro a forma de trazê-los pra página, uma forma que me tire do lugar, desafie de alguma maneira, que vibre do próprio enredo e ao mesmo tempo reverbere nele gerando outro movimento, estas ideias acabam derretendo pra mim. Em relação às personagens, achei interessante essa tua percepção de serem pessoas comuns as personagens dos meus livros. Eu tenho a curiosidade, desde criança, de tentar desvendar o que se passa dentro das pessoas, sobretudo quando elas estão sozinhas, sentadas num ônibus, voltando pra casa depois de um dia cheio de trabalho, carregando sacolas de supermercado. Eu sempre me pergunto, o que essa pessoa teme, o que ela sonha, o que ela odeia, será que ela já matou alguém? [risos] As pessoas em momentos comuns me inquietam, porque nenhum ser humano é comum no final das contas, todo mundo é um poço de mistérios, de dores, de alegrias, de sonhos, esquisitices, contradições. O que aquela pessoa está guardando? Gosto de cavar o comum até chegar no incomum das personagens.
Carla: Faz muito sentido pra mim essa busca do incomum, do escondido. Eu realmente acredito que todo mundo tem algum segredo, alguma parte que não vai à tona. E isso interessa muito à literatura, o incomum do que parece comum, os detalhes. Realmente vejo isso nas suas personagens. Fico aqui pensando se isso não fala um pouco de quem escreve também. Se a gente não busca revelar no outro o que gostaríamos de revelar (ou esconder) em nós mesmos. Como isso bate pra você? Você se considera uma pessoa "comum", ou seja, um poço de mistérios, dores, alegrias, sonhos, esquisitices, contradições. Você seria um bom personagem?
Marina: Boa essa pergunta. Olha, se a gente pensar que qualquer personagem pode ser interessante pra ficção a depender do olhar de quem a cria, acho que daí sim, posso dar uma boa personagem, se a autora trabalhar bastante. Porque eu acredito muito que o movimento acontece – pelo menos boa parte dele, porque há também a dose de mistério necessária a todo processo, a abertura ao próprio processo – com trabalho, técnica, escolhas, referências. Então, a escritora carrega numa tinta aqui, retira certa informação dali, organiza, desorganiza, cria relações, faz escolhas, vai trazendo as camadas da personagem e a figura vai ganhando caldo, vida, mais dimensões. Acredito que seja por aí. Então, pensando assim, qualquer figura pode se tornar boa personagem. Agora, sem a escritora trabalhar, nossa, eu seria chatérrima [risos]. Então, pra mim, tá no olhar de quem vê, no sentido de pensar a personagem. As pessoas são interessantes, cada uma guarda estas coisas todas que falamos, pra vida são interessantíssimas, todas ou a grande maioria, mas pra ficção literária aí é o olhar de quem escreve que vai ter que pinçar o detalhe do interessante, cavar o incomum, trazer à tona a humanidade ali na figura, que muitas vezes, desconfio, mora nas contradições, nas ambivalências da existência.
Sobre a primeira pergunta, do revelar no outro... eu acho que isso acontece, sim. Na literatura, no teatro, nas artes em geral. O inconsciente escapa e se infiltra na obra, de alguma maneira. Mas eu busco o exercício de correr de mim na medida da criação, ficcionalizar ao máximo, o menos biográfico possível no nível consciente, querendo escavar as personagens, deixar que elas se revelem ou escondam. Mas algo da gente sempre se impõe. Em geral nossas crateras, os espaços das faltas.
Carla: Da sua fala, me ocorre que a falta nos aproxima. Eu me aproximo de você como pessoa quando vejo que sua falta é do tamanho da minha. Se a falta nos constitui, somos feitos de ausência, do que não somos e o que não somos temos em comum. Gosto dessa ideia de que a ficção nasce da falta e é ela que escapa nas entrelinhas. Ao mesmo tempo penso que se a ficção nasce da falta e busca preenchê-la, seria então a materialização do impossível? Será que é por isso que, às vezes, parece que escrever é correr atrás do próprio rabo? Será que nunca vamos alcançar o que almejamos? Esse sentimento de incompletude seria próprio do oficio do escritor?
No seu processo, qual é o momento em que você entende que seu texto atingiu o objetivo? Quando você o considera completo ou terminado? Ou será que esse momento nunca chega?
Marina: Bah, essa pergunta é complexa. Bom, tendo a sentir que metafisicamente é uma tragédia o ofício da escrita, porque realmente eu sinto que uma obra nunca está pronta-pronta. A gente define um marco, motivada por objetivos diversos, e a gente considera a obra pronta. Mesmo assim, até a hora de ir pra gráfica e torná-la pública, a caneta ainda vai descer sobre o texto. Tenho vivido essa tragédia com mais força agora, com a primeira narrativa longa que escrevi e que segue na gaveta. Tem mais de um ano que, digamos assim, eu dei esse trabalho por terminado. Mas desde esse marco eu já voltei no original tantas vezes, e provavelmente vou voltar mais outras tantas até que seja dado o tempo da publicação e não tenha mais jeito. Só que nessa experiência sinto que acrescentei novas camadas ao meu dilema [risos], porque assim, eu leio e releio o texto e sinto que é o que posso fazer por ele agora, eu quero colocar essa história no mundo, eu já atingi objetivos que tinha com ela, mas eu sei que ela pode chegar em outros lugares, uns lugares que eu idealizo, que construo nas ideias, mas que ainda não tenho as ferramentas ou a vivência ou o mistério necessário pra alcançar, e talvez eu nunca tenha essas coisas todas. É trágico. Tem uma falta imensa povoando meu texto e que me deixa intrigada, que me move e me condena ao mesmo tempo. Mas aí tem meu lado prático, aventureiro, explorador, que fala: “bora publicar porque tá massa, não tá nesse lá que você cismou, mas tá massa”. O negócio é que esse lá que eu gostaria de alcançar muda o tempo todo, porque eu amadureço junto do texto, me movimento junto e a partir dele, então toda vez que eu faço uma revisão eu já sou outra e se eu voltar pro texto eu vou querer mais dele, e assim até o infinito. Então sempre vai ter uma falta, e acho que é essa falta que reverbera a vida da criação, que mostra pra gente que a coisa tá em movimento, tá pulsando. Mas é trágico. É difícil de viver. É difícil de decidir também. Difícil entender o tempo necessário de gaveta e de revisão de um livro e quando o tempo começa a ser excessivo e mexer na obra começa a transformá-la em outra obra que não é mais aquela obra. Essa pergunta me relembrou as agonias que tenho vivido nesse sentido. É gostoso também viver essa agonia, esse aspecto meio trágico do ofício. Acho que isso é também um sentimento que vem quando a gente pensa em publicar, porque quem não quer publicar pode ficar eternamente criando uma obra inacabada, sempre viva, sempre pulsante, sempre em transformação. Mas eu quero publicar, então eu tenho que lidar com essa morte do processo, com esses marcos temporais, com essa presença da falta o tempo todo me atormentando.
Carla: O texto em constante transformação, assim como nós. Afinal, somos feitos do mesmo material: a linguagem. É bonito pensar, também, que, quando chegar no leitor, o texto vai ser ainda outro. E talvez se um dia eu, como leitora, o reler, sendo eu outra, ele ainda mais uma vez se modifique, numa espiral sem fim.
Eu tenho um hábito que acho que se relaciona um pouco com isso. Os livros aos quais fico mais apegada gosto de ler marcando, riscando, escrevendo nas bordas, acho que numa tentativa de me deixar ali, me entranhar, fazer parte dele. Penso que se um dia eu vier a reler vou encontrar um pouco de mim também.
Rosa Montero disse que “a gente sempre escreve contra a morte” e isso me diz tanto que virou epígrafe do meu segundo livro. Escrever pode ser uma tentativa de reter. E talvez seja por isso que a gente escreve. Para reter o que a vida não consegue. O que você gostaria de imortalizar com a sua escrita?
Marina: Eu acho que essa é a razão da publicação pra mim, permitir que nasça esse outro texto a partir do encontro com a pessoa leitora. É o que me impede de escrever o mesmo texto num processo eterno. Também compartilho contigo esse hábito de deixar marcas pelos livros. Gosto tanto das intencionais, dos riscos, dos diálogos das margens, da orelha na ponta da página (sim eu faço isso), quanto gosto das acidentais, uma mancha de café, uma flor encontrada pelo caminho que vai parar no meio de uma página, recados que alguém deixa, ou fotos de pessoas estranhas no caso dos livros de sebo, coisas do tipo, que contam um pouco da gente nesse retorno ao livro, um pouco da leitora que a gente era, um pouco dos lugares que habitamos, e às vezes até um pouco de pessoas que nem conhecemos. É bonito mesmo isso, é vivo.
Nossa, Carla, forte e bonita demais essa frase da Rosa Montero, escritora que por sinal eu adoro. Escrever contra a morte. Tem uma ideia de movimento aí, e de novo vou trazer o trágico, porque ir contra a morte é algo trágico. Então essa frase traz esse movimento trágico de tentar vencer o próprio tempo. Impossível? Há obras que se eternizam, ultrapassam todos os tempos e mantêm vivas suas autoras. Nesse sentido acho que não penso muito. Por mais que se queira perseguir o caminho de uma obra atemporal, acho que o tempo – em dimensão metafísica, social e política – é o soberano nesse caso, e nós não teremos garantia alguma. Nem brinco com essa pretensão. Apenas escrevo. Mas se for pensar na ideia da morte, e dessa retenção que você trouxe – uma ideia bonita, aliás – eu gosto de pensar que escrevo com a morte, partindo da presença constante da morte na vida. Escrevo com a morte, porque talvez a presença dela seja a forma mais bonita de pulsar a vida, ou reter coisas da vida que nos escapam, de enfim trazer pulsando pra página o movimento da vida, que acaba se confundindo com o da morte, como numa fita de Möbius (Moebius), a gente não consegue bem distinguir onde começa uma e termina outra. Então no meu exercício de escrita, pensando agora, porque tua pergunta me abriu várias portas, eu talvez busque escrever com a morte para a partir dela imortalizar o movimento da vida. Nesse contexto lembrei de dois livros que li e modificaram a minha relação com a morte, ou estão ainda modificando essa relação, é um processo eterno. Os livros são "A negação da morte", do Ernest Becker e "Tudo sobre o amor" da bell hooks. Essas leituras me fizeram pensar muito sobre o medo da morte cultivado pela cultura ocidental e o quanto isso pode ser um grande amortizador de pulsão de vida. A bell hooks tem uma hora que fala que é preciso ter coragem para fazer amizade com a morte e que encontramos essa coragem na vida por meio do amor, e a concepção dela de amor tem a ideia do movimento porque traz o amor como uma ação, um modo de agir no mundo, resumindo muito aqui e com o filtro dos meus entendimentos, claro, mas essas ideias me ajudam a desenhar um pouco dessa minha resposta. Exercito minha escrita buscando me aproximar da morte, ao contrário de evitá-la ou ultrapassá-la, buscando criar possibilidade de movimento pulsante de vida nessa aproximação com a morte. É como te disse: essa pergunta eu vou levar pra terapia [risos].
SOBRE ELAS
Marina Monteiro nasceu em Porto Alegre no ano de 1982 e viveu por lá sua primeira infância. Morou por anos na região da grande Florianópolis e atualmente está radicada na cidade do Rio de Janeiro. Escreve literatura, dramaturgia e roteiro. É atriz, arte educadora, produtora e gestora cultural. Licenciada em teatro pela UDESC e bacharela em filosofia pela UFRJ. Participa com publicações em zines, revistas e antologias. Autora dos livros “Comendo borboletas Azuis” (Multifoco/2010); “Em nossa cidade amarelinha era sapata” (Patuá/2019), vencedor do Prêmio AGES 2020, na categoria narrativa curta e “Contos de vista Pontos de queda” (Patuá/2021), finalista do Prêmio Açorianos 2022/2023 e vencedor do Prêmio Minuano de Literatura 2022, na categoria contos.
Carla Guerson é capixaba, escritora, feminista, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022).
1 comentário
Que prosa boa!