Por Carla Guerson
Carla: Verena, eu conheci seu livro antes de te conhecer. E depois passei a te acompanhar nas redes sociais e acabei vendo uma outra face sua, que, pra mim, era inesperada. Uma face doce, engraçada. Essa dualidade (ou multiplicidade) me chamou muita atenção e me causou uma identificação imediata. Adoro pessoas que não se restringem a apenas um papel.
O que você acha dessa dicotomia entre a Verena escritora e a Verena pessoa física, digamos assim? Essa dicotomia existe? Como você lida com as várias faces de você mesma? Pra você, o poeta (ou o escritor, no caso) é fingidor, como diz Pessoa? Ou a gente finge na vida real e coloca as verdades na nossa escrita?
Verena: Acho que todos nós somos múltiplos, contraditórios, dicotômicos, multifacetados. (E nem é só porque sou geminiana, risos.) Mas também acredito que, no meio literário, as pessoas costumam escolher máscaras artísticas que se encaixem dentro das temáticas de suas respectivas literaturas. Assumir um papel pode ser mais fácil — e ajuda no marketing e na autodivulgação. Às vezes até me pergunto: será que eu deveria adotar uma persona mais sombria para ser vista de maneira mais profissional? Sei que isso corresponderia mais à expectativa do público, mas gosto demais do meu lado cômico, infantiloide e doce para mantê-lo escondido. São todas essas partes de mim que criam, logo, são todas igualmente importantes. Ainda assim, às vezes rola uma quebra de expectativa bastante interessante. Sei que alguns leitores pintam um retrato soturno de mim. Acham que sou melancólica, séria e austera. E tudo bem, acho que é a imagem que surge com a leitura dos meus textos. Talvez eu seja mesmo assim lá no fundo. Tem uma parte minha que fica presa em um quarto escuro, cavoucando as próprias feridas, tirando o pó de coisas que deveriam ter sido descartadas há muito tempo, achando graça em agonizar de tristeza. Mas não sou só isso. Sobre a frase do Pessoa, discordo concordando.
O que está na literatura é verdade. Ela é sempre verdade, mesmo que seja mentira. Todo o resto é fingimento.
Carla: Essa expectativa a respeito da persona de um escritor (e aqui, de uma escritora, já que o gênero pode ser importante) me lembrou o conselho de Clarice à Lygia: “Faça como eu, não ria – os homens não levam mulheres a sério quando riem”. Acho que mesmo muitos anos depois, essa aura ainda existe, uma aparente impossibilidade de ser risonha e profunda ao mesmo tempo, especialmente em se tratando de mulheres. Mas também penso que pode ser por conta da expectativa de que o que a gente escreve esteja relacionado com o que a gente vive. Sendo que, talvez, seja justamente o contrário. Flaubert dizia que a inventividade da criação artística estava atrelada a uma existência bem ordenada em outras esferas. Seu conselho: “seja estável e bem ordenado em sua vida para que possa ser feroz e original em seu trabalho”. De fato, a maioria dos escritores vive uma vida bem ordinária. Pode ser que a gente escreva justamente o que a gente não vive?
Verena: Acho que a expectativa acerca da persona do autor envolve tudo que diz respeito à arte. Temos a tendência de espelhar a obra no artista. O que não é de todo errado, pois, no fim das contas, a obra artística é sim parte da essência do criador. Logo, é inerente, um elemento constitutivo e indispensável daquela pessoa.
Sobre escrevermos justamente aquilo que não se vive, acredito que pode ser as duas coisas: tudo depende daquilo que se almeja com a escrita. Como a leitura, ela tem múltiplas funções, e depende da intenção criativa; pode ser a maneira que o autor encontrou de elaborar uma questão vivida, abordar uma situação cotidiana de interesse para provocar catarse, como forma de escapismo, ou mesmo tudo isso ao mesmo tempo. Gosto muito de uma frase da autora Juliana Frank, que vivo citando por aí em todas as chances que tenho: “Se está escrito, aconteceu. Se é verdade, não importa.” Independentemente de a obra tratar de algo vivido ou totalmente inventado, se aquela for a sua verdade — a única que importa — o leitor vai acreditar na história do início ao fim. O escritor precisa ser o melhor mentiroso — a pessoa mais honesta — que existe. O segredo está justamente em não saber qual é a realidade. Melhor ainda, no fato de ela se tornar desimportante.
Carla: Gostei demais dessa ideia da verdade que importa. Até porque, verdade ou mentira (se é que existe essa divisão), o que está escrito, a literatura, a palavra, pode nos levar para mais perto da gente mesmo. Do que a gente tem de mais primordial, de mais caro. Como uma espécie de regressão, de mergulho interno.
Na leitura que eu fiz do seu livro "Inventario de predadores domésticos", essa foi uma das sensações que eu tive. Além do medo e da repulsa, que acho que ficam nas primeiras camadas do leitor, tive uma sensação de familiaridade. Como se você tivesse me mostrando sentimentos já conhecidos (e talvez reprimidos). Uma volta ao terror infantil. E é na infância que a gente é mais autêntico, mais inteiramente nós mesmos, talvez por estarmos ainda despidos dos freios e das regras sociais que depois aprendemos (ou engolimos). Ao mesmo tempo, também pode ser nossa fase mais "mentirosa", em que a gente vive uma mistura de realidade e fantasia sem compromisso com essas fronteiras estanques.
Eu percebo que a infância é um elemento importante na sua literatura. Quem foi a Verena criança e quanto dela está presente na Verena escritora?
Verena: Tenho uma visão bastante psicanalítica sobre a vida; acredito que a infância é o cerne de tudo, o big bang da nossa existência e do que nos tornaremos depois. É esse fascínio, a certeza de que esse ciclo do nosso desenvolvimento molda cada ser humano de forma quase permanente que move minha literatura. A infância é um berço de medos e maravilhas, de dores e deleites, violências e amores. Ela é um estado ambivalente da vida; assustadora e magnífica, bela e terrível, tudo ao mesmo tempo. A criança é matéria bruta a ser dilapidada pelo mundo, e, para mim, não há nada mais próximo à escrita do que esse processo de transformação. Escrevo sobre a infância, e pretendo continuar me debruçando nesta temática, não só porque tenho minhas próprias questões (é quase uma fixação), mas porque ainda guardo em mim muito da menina que fui — e me lembro. Quando escrevo, é quase como se deixasse meu corpo, voltasse ao passado, sentasse dentro do invólucro de carne bronzeada que habitei durante uma década, com meus joelhos e cotovelos ralados, meus dentes faltando, e olhasse através dos mesmos olhos.
A Verena criança era uma menina-moleca indomável e dissimulada; era irreverente, falante, agressiva, mentirosa, cheia de energia e imaginação. A Verena escritora é o que a menina se tornou depois de ser mastigada pelos dentes do mundo. Mesmo assim, acho que as duas mantêm a mesma essência — uma dualidade agridoce.
Carla: Eu também fui uma criança mentirosa. Quer dizer, pelo menos achava que sim, ouvia que sim. Imaginativa. Gosto de pensar que a mentira é, no final das contas, uma narrativa. Uma forma de contar as coisas. Mais tarde entendi que tem muita mentira na verdade, especialmente quando a gente vê por apenas um ângulo. E também tem verdade na mentira, talvez pelo mesmo motivo. Quanto de nós tem numa mentira que a gente escolhe contar? Cheguei a escrever sobre isso num poema: ao menos vivo minhas próprias mentiras e as de mais ninguém.
Você acha que é possível transformar mentiras em verdade? E ao contrário? Qual a verdade que você gostaria que fosse mentira?
Verena: A mentira pode ser várias coisas, né? Desde uma forma de narrar, de enfeitar a realidade, até a saída para fugir de um castigo, uma surra... No meu conhecimento de vida, crianças que costumam ser punidas com mais severidade tendem a ser bastante mentirosas. E, dentro da mentira que contam, há ali uma versão mais generosa de si próprias e da realidade em si. São mentiras lisonjeiras. Eu sempre fui bastante criativa. Meu jeito de me destacar em meio ao grupo envolvia a invenção de alguma história mirabolante, "Você jura que ontem viu um disco voador pousando no terreno da frente?", "Eu juro pela minha mãe!", era meu jeitinho de me sentir especial naquele mar de gente. Acho que justamente por isso as mentiras que escolhemos contar para nós mesmos são as que nos confortam, que nos mantém seguros, uma espécie de escudo para escapar da autopunição, dos tapas na cara que a vida dá.
Agora, sobre transformar mentiras em verdade, não é isso que é a literatura? Inventar uma mentira bem contada e depois se encher de felicidade por que todo mundo acreditou? Nada me deixa mais feliz do que receber uma mensagem de um leitor dizendo que chorou lendo minhas histórias, que destruí o dia dele, que ficou transtornado depois de ler meu livro... Claro que isso envolve todo um processo de catarse, um desejo de conexão com as palavras. É como se eu colocasse ali uma porta, mas coubesse ao leitor girar a chave na fechadura. Quando o leitor abre a porta, e acontece esse impacto, esse diálogo, essa troca, esse acasalamento de universos, eu sinto que meu dever foi cumprido. Às vezes, sinto como se minhas mentiras verdadeiras — ou verdades mentirosas — sugassem a força vital das pessoas e alimentassem minha juventude. É o que move minha vontade de seguir escrevendo (devo ser uma espécie de vampira de energia, risos).
Sobre as verdades que gostaríamos de transformar em mentira, meu pensamento imediatamente se voltou à única verdade definitiva, incontornável e inescapável: a morte. Todo o resto a gente maneja, e se não der certo, tudo bem também.
SOBRE ELAS
Verena Cavalcante é autora, tradutora e revisora de textos. Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, trabalha no mercado editorial há mais de uma década. Como autora, escreveu três livros de contos e participou de diversas antologias e revistas digitais. Inventário de Predadores Domésticos, lançado pela Darkside Books, é seu último trabalho publicado.
Carla Guerson é capixaba, escritora, feminista, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022).