O legado do nada, de Érika Gentile
Share
Meu pai era um adepto dos problemas, todos os dias, dizia, a gente precisa de um para resolver, isso nos tira da cama. Assim, na sua viuvez inesperada, adotou o modo sobrevivência para enfrentar o resto do caminho. Levantava-se exatamente no mesmo horário, apesar de velho, apesar de aposentado, apesar de viúvo, apesar dos filhos criados. Passava um café forte, estendia uma toalha na mesa e engolia com o pingado os comprimidos e a promessa incógnita do dia. Seguia sua meticulosa rotina de deixar em ordem o quarto, a cozinha, os pensamentos, cuidava do quintal de orquídeas e cebolinhas, combatia pragas de caramujos e cochonilhas e na marcenaria improvisada consertava os nossos quebrados. Dirigia pela cidade com a calma e o medo dos velhos, parando em absolutamente todas as esquinas até conseguir uma vaga entre o banco e a farmácia, para onde caminhava arrastando uma perna por conta do joelho gasto antes do tempo. Chamava a todos de menino ou menina, respondendo aos cumprimentos nos encontros casuais dentro da loja de ferragens ou no supermercado. Ao voltar para casa, riscava meticuloso sua lista feita na véspera, os horários e afazeres previamente organizados. Preparava o próprio almoço e depois fazia a sesta embalado pela voz dos comentaristas esportivos do sempre mesmo canal de televisão.
O sol da tarde recomendava recolhimento, os filhos já tinham dado a passadinha cotidiana, restava um filme ou palavras cruzadas. Eu telefonava às dezoito horas, meu gesto de espantar a angústia da ave maria escapada de algum rádio e de aplacar a solidão do alpendre de onde ele assistia as luzes se acendendo. O que você fez hoje? Nada. E seguíamos trocando nossos vazios separados pela geografia.
Aprendi com ele sobre o vácuo da vida que sobra no fim. No primeiro momento, a gente arruma a casa, mas logo em seguida, vem a percepção de que a casa não voltará à sua desordem natural: os meninos cresceram, sobram ossos gastos, pouco dinheiro e agendas em branco esperando nossas listas travestidas de importância.
Arrumando seus papéis depois de sua morte dei com suas caprichosas agendas de tarefas, o prosaico guia dos dois mil oitocentos e vinte dias anotados após a morte da minha mãe. Encontrei, além do trivial açougue de quarta-feira, o número de degraus da minha casa, os filmes assistidos comigo nos cinemas vazios com baldes de pipoca e muito sangue na tela, a observação do espanto — não pago mais —, as dúvidas, onde fica o ninho do beija-flor?
Nas últimas páginas, as épocas das frutas, renovar o plano de saúde, não preciso fazer contas, eu estou tão cansado.
Isso é tudo.
SOBRE A AUTORA
Érika Gentile se dedica ao estudo da escrita criativa desde 2012. Publicou em antologias, coletâneas e revistas literárias, como Revista Mathilda e Ruído Manifesto. Figura entre os autores do Acervo de Literatura Digital Mato Grossense, integra o Coletivo Literário Maria Taquara. — Mulherio das Letras (MT). Faz parte da publicação do livro de contos "Um corpo ainda é pouco", promovida pelo Coletivo Uma Casa Toda Nossa (2024). É uma das selecionadas para o CLIPE- Curso Livre de Preparação de Escritores 2024, promovido pela Casa das Rosas (SP).
6 comentários
Muito bonito, poético.
esse texto me quebrou. parece até que o vejo.
O legado de tudo. ❤
Essa lista me devolveu o poético, estou tão cansada.
Tão sutil, rotineiro e, ao mesmo tempo, tão ele…..Lindo
Lindo, delicado e absolutamente verdadeiro 👏👏👏