Papo na Sala #1 | Entrevista com Irka Barrios

Papo na Sala #1 | Entrevista com Irka Barrios

Por Carla Guerson

 

Na primeira entrevista Papo na Sala, novo quadro mensal em que entrevistamos escritoras contemporâneas, falamos sobre um gênero pouco falado: a literatura de horror. Nossa convidada é Irka Barrios, autora de Lauren (Caos & Letras, 2019), livro finalista do Prêmio Jabuti, de Júpiter Marte Saturno (Uboro Lopes, 2022), e co-organizadora da antologia O Novo Horror (2021), lançada pela O Grifo. Quem comanda o papo é a escritora Carla Guerson, autora de O som do tapa (Patuá, 2021) e Fogo de Palha (Pedregulho, 2022). Leia o texto integral abaixo:

 

Carla: Irka, eu não sou uma grande leitora de terror, mas tenho aprendido a apreciar mais o gênero a partir da leitura de mulheres que escrevem nessa área. Você é, no Brasil, um dos exponenciais na literatura produzida por mulheres, tendo contos e histórias de terror premiados, inclusive. De onde veio essa inspiração? Qual foi o momento em que você decidiu que essa seria uma linha a seguir na sua literatura?

 Irka: Eu gosto de terror desde pequena. Acho que é uma emoção muito intensa, e isso, pelo menos em mim, é viciante. Lembro de quando tinha sete ou oito anos e morria de medo de filme de terror, mas não conseguia deixar de olhar. O medo é uma emoção fascinante, eu gosto de ler sobre a psicologia e a filosofia por trás dessa sensação. Na minha escrita, entretanto, as narrativas de medo chegaram depois. Foi num momento em que aceitei que a minha forma de comunicação era através de situações absurdas ou amedrontadoras. Mas eu não me coloco fechadinha dentro da gaveta do horror. Eu escrevo contos que flertam com diversos gêneros. Os dois últimos que escrevi foram uma distopia e um conto que narra a relação de um pai e uma filha. Ambos não têm nada de sobrenatural. Penso que o que norteia, de verdade, as narrativas literárias, são as relações humanas. É onde estão os grandes conflitos.

 

Carla: Percebo que o terror pode nos oferecer uma experiência corpórea. Eu sinto isso quando, por exemplo, vejo um filme de terror. A experiência passa do racional e chega num lugar que talvez eu não chegasse sem essa tratativa estética do terror. São incômodos físicos, não só emocionais ou psíquicos. Acredito que é essa experiência que a gente busca repetidamente quando criança: sentir. Como aquela brincadeira de rodar rodar rodar até ficar tonta. Até cair. A vertigem. Você acha que é isso que, de alguma forma, você busca na literatura, seja por meio do terror ou não?

Irka: Eu acho que, enquanto leitora ou espectadora, busco uma emoção intensa, similar a essa a qual você se refere. A literatura de horror, desde seus primórdios, era classificada como uma literatura de sensações. Esse, inclusive, é um dos motivos de ter um apelo popular tão forte. As penny dreadfuls, que eram pequenas histórias de horror vendidas a um penny, continham temas assombrosos, repugnantes, sanguinários. Como escritora, vejo nas histórias de horror muita coisa que me interessa: tem a simbologia do monstro, a perseguição ao diferente (mulheres, povos de regiões longínquas, de religiões diferentes, etnias diferentes, etc), tudo isso levando em conta que o "padrão" era o homem branco europeu. Acho fascinante me aprofundar nessas questões e conhecer os medos daquele homem que se sentia o dono do mundo. Também me interessa a reflexão sobre a evolução de nossos medos enquanto sociedade. O que é um medo real e o que é um medo contaminado por outras culturas.

Agora, falando em literatura de horror, o preconceito que esse gênero sempre sofreu tem a ver com a ênfase na história, na trama. Os personagens não tinham seus psicológicos investigados e acabavam seguindo um padrão estereotipado. Edgar Allan Poe começou a mudar a situação quando trouxe o medo para dentro dos personagens. É outro assunto fascinante dentro do horror: o medo que vem de fora versus o medo que vem de dentro. Hoje, nas condições em que vivemos, com o triunfo das ideias racionais e a preponderância da ciência sobre as crendices e misticismos, é mais difícil construir uma narrativa que utilize o medo que vem de fora. Mas, quando alguma autora consegue, o efeito é muito interessante.

 

 

Carla: Interessante pensar sobre essa perseguição ao diferente que você mencionou. Tem um trecho de Mandíbula, livro da Monica Ojeda (que não necessariamente é um livro de terror, mas trata, talvez, do medo) em que a autora diz que "o horrível, o que realmente petrifica nossos órgãos, é o que conhecemos apenas pela metade; o que está perto de nós e, mesmo assim, não conseguimos entender". A humanidade tem dificuldade de lidar com o que não sabe explicar ou categorizar. Isso me faz pensar na mulher, ao longo dos séculos, no medo que o corpo feminino causou em um mundo dominado por homens. Nas mulheres queimadas nas fogueiras. E mais recentemente, na perseguição que os corpos dissidentes (fora do padrão heteronormativo) sofrem diariamente. De que forma a literatura pode nos ajudar, como sociedade, a lidar com isso? Talvez justamente quebrando os estereótipos? Talvez nos fazendo confrontar os nossos próprios medos?

Irka: Eu não gosto muito da visão utilitarista das coisas. Penso que, no fim das contas, é uma visão que precifica a expressão artística. Tive uma discussão interessante com uma amiga filósofa sobre o suposto poder pedagógico da literatura. Disse a ela que não acho que a literatura tem a obrigação de ensinar algo. Ela, por outro lado, me trouxe teorias filosóficas calcadas nas literaturas disponíveis para as crianças, que demonstram o aprendizado através do exemplo. A discussão é ampla. Mas sim, o poder da literatura é também trazer a diversidade de vidas e de indivíduos. E dentro do texto literário que respeita as individualidades acontecem identificações. A identificação, a representatividade, enfim, parecem ser o caminho. Particularmente, sou contra qualquer tipo de censura. Acho que o leitor vai saber separar o personagem bem construído daquele que é estereotipado. 

Sobre a coisificação das mulheres e de seus corpos, é nossa tarefa enquanto escritoras mudar o panorama através das nossas ficções. Na literatura contemporânea, as mulheres estão construindo novas representações femininas. Personagens más, sem caráter, sem freio sexual, por exemplo. Mulheres complexas, não apenas vítimas. É o que busco em minhas leituras. Aliás, quero mais vilãs.

Sobre confrontar nossos medos, acho que tem a ver com a diversidade de situações e de personagens. Os medos mudam, se moldam a novas realidades, a literatura acaba reproduzindo tudo isso.

 

Na literatura contemporânea, as mulheres estão construindo novas representações femininas. Personagens más, sem caráter, sem freio sexual, por exemplo. Mulheres complexas, não apenas vítimas. É o que busco em minhas leituras. Aliás, quero mais vilãs. 

 

Carla: Em uma das mesas que assisti na Flip, a escritora argentina Camila Sosa Villada afirmou que “a literatura não resolve nada”. Lembro que a fala gerou alguma discussão com as amigas que me acompanhavam. Afinal, qual é o papel da literatura? Não chegamos a uma única resposta. Fui atrás da fala da Camila, da qual não me lembrava por completo, e vi que ela afirma: “É um espírito utilitário querer que tudo sirva para algo, inclusive o que não serve para nada, como a literatura. É uma promessa perigosa dizer que ela vai sanar seus traumas. Quantos escritores se suicidaram?”

Concordo com ela e com você, neste ponto em que afirmamos que não se “deve” algo com a literatura. Literatura é arte, não “deve” nada ninguém. Por outro lado, lembro de Antônio Cândido e o texto “O direito à literatura”, onde afirma que a literatura, no seu sentido mais amplo, corresponde a uma necessidade universal. Afinal, se a literatura não deve, ela pode. Pode ampliar nossa visão, no mínimo. Acho que foi isso que você acabou me respondendo sem que eu tivesse sabido formular a pergunta da melhor forma.

Você me diz que quer ver mais vilãs, mais mulheres que não sejam vítimas. Já ouvi dizer que a gente devia escrever o livro que queríamos ler, mas não sei se isso é verdade. O que você acha? Você tem escrito o que não encontra peso na literatura? Para você, a ausência é um bom incentivo à escrita? Ou será que quando lemos personagens mais parecidos com os que gostaríamos de escrever nos sentimos mais representadas?

Irka: Eu adoro essa entrevista do Antônio Cândido, ali ele diz muita coisa interessante. Não lembro dos detalhes, mas acho que ele diz que retirar a literatura da vida de uma pessoa é retirar sonhos, possibilidades, algo nesse sentido. Ele só peca um pouquinho quando quer conceituar boa e má literatura [mas a gente perdoa, óbvio]. Também adorei essa fala da Camilla que você trouxe.

Sobre a sua pergunta, acho que o ideal é escrever o livro que gostaríamos de ler. Falo não só no sentido do conteúdo, mas da forma, do cuidado com o texto, com a estética, a linguagem, etc. Minha escrita, ouvi um dia, está impregnada de violência. Não é, porém, uma violência sofrida pelas personagens. É uma violência reativa ou uma vontade de reação. Passei a perceber essa característica no meu texto. Não acho que não exista essa abordagem na literatura, outras autoras se voltaram para essa direção. E me sinto conectada a personagens como sujeitos, com desejos, vontades, raivas e amores.

 

Minha escrita, ouvi um dia, está impregnada de violência. Não é, porém, uma violência sofrida pelas personagens. É uma violência reativa ou uma vontade de reação.

 

A ausência de temas que me interessam pode ser, sim, um incentivo à escrita porque buscamos originalidade. Toda artista quer trazer uma visão nova, mesmo que o assunto já tenha sido abordado inúmeras vezes.

O número crescente de mulheres que escrevem me faz sentir acolhida ou incentivada. Ando descobrindo muitas mulheres com grande talento e acho é só o começo. Temos muitas coisas a contar e de muitos ângulos.

 

 

Irka Barrios

Irka Barrios é autora de Lauren (Caos & Letras, 2019), livro finalista do Prêmio Jabuti, e de Júpiter Marte Saturno (Uboro Lopes, 2022). Mestre (PUCRS) e Doutoranda (UFRGS) em Escrita Criativa, venceu os prêmios Brasil em Prosa (Amazon, 2015), com o conto "O coelho branco", e Odisseia da Literatura Fantástica (2022), com o conto "A parte de dentro". É uma das organizadoras da antologia O Novo Horror (2021) pela O Grifo. 

 

Carla Guerson

Carla Guerson é capixaba, escritora, feminista, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022).

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