Por Carla Guerson
Carla: Carina, um dia você escreveu na sua newsletter (e aqui eu já faço uma inserção para contar que a Carina tem uma das newsletter mais bem humoradas e aleatoriamente geniais da internet): “Às vezes acho que escrevo, e paguei todas as oficinas e livros de teoria, para transformar água de chuchu em uma sopa. Quem sabe um creme. Não sei se um dia vai dar liga.”
Com essa não-resposta já em mente, resolvi começar com uma das perguntas mais infames de uma entrevista a uma escritora: quando foi que você iniciou essa coisa de ser escritora? Você acha que existe um momento, uma virada de chave, alguma coisa do gênero? Ou a gente (e aqui eu já me incluo) nasceu com essa sina, bem no estilo Drummond, marcada por um anjo torto: vai ser gauche. Ou na melhor forma de Adélia Prado, nosso anjo esbelto (desses que tocam trombeta) anunciou: vai carregar bandeira. Escrever, para você, se parece mais com a sina de Drummond ou com a de Adélia?
Carina: Acho que nem com Adélia, nem com Drummond, mas talvez mais próxima das trombetas dela? Digo, inventar de virar escritora foi uma coisa bem recente. Antes eu escrevia para amigos, sem muita técnica, sem muita convicção. Eu fiz o caminho inverso, talvez: inventei de virar escritora escrevendo meu livro. Comecei a estudar por causa dele, comecei a pensar linguagem por causa dele, e sinto que ele foi ainda um primeiro passo de um começo. Apesar de tantas dúvidas, me sinto bem mais confiante agora com a escrita, acho que esse é um espaço que eu posso ocupar, que ocupo. Eu sempre tive um magma de artista e não sabia como dar vazão a ele, sabe? Penso muito sobre tudo, mas não num campo racional. Às vezes acho que sinto demais, me acho estranha, apesar de também desgraçadamente banal. Acho que é isso: eu fico suspensa em coisas pequenas, o tempo todo. Fico boquiaberta sem abrir a boca, meio num: Menina! Como pode, hein? No fundo, acho que escrevo livros, projetos mais longos, para lidar com rejeições que acumulo ao longo do tempo, pequenas e grandes. E revidá-las com um grande desejo, um desejo que desorganiza o mundo. Não num campo da vingança, mas num campo de construir, de alguma forma, um mundo totalmente meu e em seguida de todos, o avesso da rejeição. Então tem algo do gauche do Drummond também. Podemos ficar com os dois? Risos.
"Eu fiz o caminho inverso, talvez: inventei de virar escritora escrevendo meu livro."
Carla: Outro dia eu chorei muito escrevendo uma cena e era uma cena banal. No ímpeto de dividir o momento e talvez tentando dar um significado àquela dor eu pensei em tirar uma foto da minha cara inchada no espelho e postar no Instagram. A legenda seria: escrever é revisitar a dor. Com isso eu pretendia mostrar que a dor tem um sentido. Mas ela não tem. E talvez a escrita também não tenha. Talvez a gente escreva só por teimosia. Por vaidade. Por medo. Para dar vazão a esse "pensar muito sobre tudo, mas não num campo racional". E aí vem minha segunda pergunta. Escrevemos − ponto. Em que momento precisamos (precisamos?) publicar? O momento da escrita só está completo quando o que foi escrito alcança o leitor?
Carina: O momento de publicar, para mim, é o momento em que enxergo uma unidade. Eu só publiquei um livro uma vez, então não tenho experiência com trabalhos longos. Mas não acredito muito naquela máxima de "quando não acharmos mais o que corrigir". Idealmente é isso, mas eu acredito mais num "teto" de escolhas conscientes no texto. Batido esse teto, é hora de seguir. Quanto ao momento da escrita...acho que ter leitores, ainda que poucos, diferencia o escritor de quem escreve "em benefício próprio", digamos, como uma espécie de terapia ou passatempo. O que colocamos no mundo para a apreciação do outro (ou sua total reprovação) passa a ser um trabalho. Algo que tenho é entregue à coletividade, depois de eu pensar bastante nas questões que nos atravessam enquanto humanos e também na linguagem. Quando se pensa na palavra, acredito que pensamos de alguma forma no outro. Se nenhum outro existisse, não haveria nenhuma palavra no mundo.
Carla: Interessante pensar na palavra escrita como algo que se entrega. Porque para entregar eu preciso tirar de mim, certo? O que eu entrego ao outro, deixa de ser meu, ou ao menos deixa de ser só meu. A perda do controle do que escrevemos é algo que me fascina e me amedronta. Eu adio muito o momento de entregar o texto ao mundo porque eu sei que uma vez que ele vai, não tem volta. Ao mesmo tempo, preciso que ele vá e sinto uma urgência em alguns momentos: quero sentir como ele bate no outro. Quero que vá! Quero testar, arriscar. Mesmo que eu me arrependa depois (e eu me arrependo, muito!). Como é esse processo para você? Você já se arrependeu de ter publicado algum texto? Faria algo diferente, se pudesse voltar atrás?
Carina: Nunca me arrependi. Eu tendo a não ter medo da exposição. Quando eu era pequena, me achava meio tímida espalhafatosa - não sabia fazer amigos, mas adorava falar em público, ler em voz alta. Minha única preocupação com As despedidas foi como o livro bateria nos meus pais, porque o livro menciona um pai e uma mãe. E as pessoas confundem as coisas. Mas acho que deu tudo certo rs. Dito isso, tem um projeto em particular que, se vingar mesmo, acho que vou esperar uns 20 anos para publicar com medo de expor uma pessoa, porque a história parte de um caso real. Mas é uma história tão linda. Então não sei, vamos ver. Eu acho que não tenho muito medo da exposição da escrita e assusto algumas pessoas com isso, principalmente em relacionamentos amorosos, digamos (se bem que amor quase nunca é o caso). Mas é a vida né? Vamos que vamos.
"Quando se pensa na palavra, acredito que pensamos de alguma forma no outro. Se nenhum outro existisse, não haveria nenhuma palavra no mundo. "
Carla: Você mencionou a mãe que aparece no seu livro e eu lembrei que ela é uma das minhas personagens favoritas dele. Tem uma "cena" de um dos contos, aquele do réveillon, em que a mãe decide que quer passar o réveillon na praia, então ela cozinha o jantar, embrulha e arrasta toda a família com ela para essa programação. Eu fiquei fascinada por essa mãe que está envolvida nos afazeres e nas cobranças de uma sociedade patriarcal, mas que apesar disso encontra essa brecha, essa forma (não sem dificuldade) de bancar o próprio desejo. É tão realista que comove. E às vezes tão difícil. Eu sei que você também não é a personagem, mas acho que cada personagem leva um pouco da gente. Eu arriscaria que esse "bancar o desejo apesar de" tem muito de você. De alguém que paga o preço, sim, que nem sempre consegue fugir das obrigações e das armadilhas que lhe impõem, mas que banca o querer. Faz, do jeito que dá. E arrasta quem estiver junto, se precisar. Estou certa na minha hipótese?
Carina: Nossa, que coisa linda. Eu espero que esteja. Estou de fato tentando embrulhar meu jantar e servir na praia por aqui. Não sei se vai ser uma ceia inesquecível, mas vai ser a ceia possível. Com o que tenho.
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SOBRE A ENTREVISTADA
Carina Bacelar é jornalista, redatora e escritora. Nasceu no Rio de Janeiro em 1992, é formada em Jornalismo pela PUC-Rio e tem pós-graduação em Comunicação Estratégica pela Universidade de Lisboa. Seu livro de estreia, As despedidas, foi publicado de forma independente em dezembro de 2021 e ganhou segunda edição em 2022 pela Marisco Edições. Tem textos publicados em revistas literárias e coletâneas.
SOBRE A ENTREVISTADORA
Carla Guerson é capixaba, escritora, feminista, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022).