Sempre segurando firme pro interior da gente não escorrer
Por Lara Torres
Duas semanas atrás mudei de casa. E cerca de vinte dias antes da mudança, eu já me preparava pra ela. Tá ansiosa assim?, disseram. Era isso também, mas era mais questão de organização. Eu sabia que seria A responsável pela guardação das coisas e juntando o trabalho, as tarefas domésticas e a vida, achei por bem começar antes. O fato é que os preparativos e o sonho de me livrar da imobiliária terrível alugaram um triplex na minha cabeça. Prometi pra mim que, assim que passasse, voltaria a escrever.
Quase dois meses depois ainda não voltei a escrever.
Por que depois desse triplex veio outro. E me dou conta que, antes desses dois, outro me alugou espaço antes dele. Por que sou A responsável. Um lugar onde me coloquei e que foi acatado de bom grado pelos envolvidos.
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Bato na porta do escritório do meu companheiro, sem resposta. Tento de novo. Ele está concentrado na frente do computador com enormes fones de ouvido. Lá fora, o cesto de roupas sujas explode, a casa está submersa em pelos de cachorro e o almoço demanda ser feito. Mas nada tem o poder de perturbá-lo. Já eu, tenho crises de ansiedade.
Houve momentos em que me ressenti dessa paz; e não é que não me ressinta mais. A diferença é que hoje vejo que a parca preocupação com tarefas de casa e a burocracia que envolve estar vivo não resulta de má vontade ou preguiça, e sim de uma profunda cegueira do privilégio masculino. O buraco é mais embaixo. Me pergunto se devo usar a energia que me sobra para combatê-la ou aceitar o fato de que foi falta de sorte nascer com vagina.
Não tenho a resposta.
Percebo - sempre com o mesmo alumbramento de avistar um animal raro - que nada disso passa pela sua cabeça. Fecho a porta mastigando a inveja: também queria ser cega. Vai começar uma reunião. Com licença, os homens vão debater assuntos importantes.
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Meu projeto em vias de aborto fala sobre esvaziamento. Só há algumas horas me deparei com essa palavra que engole tudo, apesar de estar em processo há meses (estou em processo?).
Esvaziamento.
Minha mãe é uma dona de casa que tentou a todo custo dedicar a vida à outra coisa, a arte, a pedagogia, a psicologia, mas o ofício de cuidar do lar e criar a menina sendo divorciada ofuscava tudo. Ofuscou sonhos, tentativas, novas tentativas. Ofusca seus olhos baixos até hoje.
Cedo eu soube que precisava segurar o que tinha dentro de mim, que é a palavra. Cedo soube o quanto é difícil.
Alguns podem dizer: você é uma grande privilegiada; tem gente que cria e produz em situação muito pior. Você nem filhos tem. E tudo isso é verdade. Não aprendi ainda a abrir corredores entre os triplex, nem sei se vou aprender. Sempre fui lenta e analógica. Envelhecer também é aceitar nossas impossibilidades.
A pergunta é se tinha mesmo que ser assim. Sempre segurando firme pro interior não escorrer. Sempre segurando firme. Sempre segurando. Nós mesmas e os outros.
Mulher não tem paz de espírito.
3 comentários
Isso é muito real. Eu vejo meu pai todinho nessa descrição. A esposa dele viaja muito a trabalho e toda vez que ela volta tem mil demandas para lidar que ele, tendo ficado em casa, trabalhando, não pôde dar conta, mas que ela, trabalhando, precisa dar. Difícil.
De fato, por mais que eles ajudem, a barra pesada ainda é nossa e realmente é muito difícil conciliar tudo. Precisamos ser firmes e priorizar um tempo para ler e escrever. Organizar o tempo é uma atitude que ajuda esse processo é não querer abarcar o mundo com as mãos. Delegar e não ser perfeccionista também ajuda. Valeu Lara pelo texto, adorei. Belo recomeço !!!
Concordo zilhões. Não há paz, mas eu acabei optando por deixar de fazer… não tem outro jeito, ninguém ia me dar o tempo que eu queria, porque como você menciona, é muito cômodo para os outros esses lugares que assumimos, então, sabe aquilo de “cada escolha uma renúncia”?, não dava pra ter a casa em ordem todo dia, a roupa ia ter que acumular, de duas a três vezes na semana o almoço é um grande apanhado de “deixa eu ver o que temos aqui”… isso, primeiro, foi um “grande incentivo” pra eu “receber ajuda”: – amor, vc viu minha blusa preta? – vi sim, tá pra lavar. – mas eu usei semana passada… – pois é, ela não se lavou sozinha, a máquina precisa ser alimentada, cê acredita? Kkkk e depois, porque me ajudou a entender que não dá pra cobrir todas as demandas. Nem sei se vc gosta de futebol americano, mas enquanto ainda era casada com o grande jogador Tom Brady, a Gisele Bundchen foi muito criticada após captarem um áudio dela no vestiário, depois que o time do marido perdeu a partida, ela o defendia: “o que querem dele? Ele não pode lançar e também correr com a bola!” Eu achei tão bom que peguei pra vida, às vezes vc vai lançar, às vezes correr. Mas isso é mais um mantra no meu dia a dia do que um fato consumado, assim como você ainda sou A Responsável por muita coisa que não precisava ser só minhas, mas problematizar já é um passo pra solução. Boa sorte, querida. Grande abraço!