Desde que visitei duas cidades pequeninas no risco da fronteira entre Argentina e Chile, fui tomada (de corpo e alma dançante) pelas músicas de seu cantor: Ariel Arroyo. E quando digo seu cantor, não é apenas um genitivo de origem: Ariel não só é da - ele canta e ele é a Patagônia. Não a turística dos ricos esquiando na neve de Bariloche, mas essa, que em suas palavras, é “lugar nenhum”, “só é distância” localizada “entre tanto nada”: a das minas e das lutas dos operários do carvão, esse cantinho rebelde esquecido do mundo. Suas músicas (com suas composições de sons de cachorros latindo e portas que se abrem em um tremendo vendaval), possuem um poder mágico de teletransportação: não importa onde você esteja, elas pintam uma nova paisagem de céu austral, repletos de imensidão e sugestões de beleza. Passando o assombro inicial de me sentir, através de suas músicas, tão pertencente a um local que até ontem era completamente desconhecido, em um momento de loucura fugidia percebi: eu já estive lá. Não em outra vida, ou em uma viagem anterior, nem mesmo em sonhos: eu estive lá porque a Patagônia é um sertão. O sertão não fielmente como o espaço político e geográfico localizável (todo lugar é isso e muito mais), mas esse lugar que borra as fronteiras entre o dentro e o fora. E que cada um de nós, movidos por Eros, tem que atravessar. Desertos que, em tempos imemoriais, já foram mar: “o meu coração é secular”.
Como não sou cantora e minha fama nessa área é a de ser expulsa até de karaokê (talvez haja um certo teor alcoólico envolvido nisso), uso daquilo que deus me deu (“Deus existir ou não existir é o mesmo espanto”): a arte da fofoca (orgulhosamente dos cronistas e das mulheres) e a de jogar conversa dentro. Fui coletando pistas nesta trilha sonora - que muito se assemelham aos restos de fósseis de animais marinhos pré-históricos encontrados no deserto-, para comentar com vocês:
Lenga: árvore símbolo da patagônia que vive em comunidade nos vales. Na minha canção favorita de Ariel (ainda que em todas as suas canções o tempo seja marcado pelo tempo das Lengas), ele conta a história de uma que canta em cima do monte, onde ficou como uma bruxa solitária, o luto de ter perdido as suas iguais. Tendo como companhia uma multidão de diferentes, os condores andinos e as águias roxas, ela espalha sementes ao vento, em uma disposição amorosa à vida.
Ao escutar essa narrativa lembrei que no espanhol chileno (graças às línguas indígenas que afrontosamente o constituem) há uma certa tendência a juntar e repetir palavras: “Colo-Colo”, nome de um dos times de futebol mais famosos do Chile, dado em homenagem a um líder mapuche; “Bio-Bio”, nome de um rio e também de um estado; “Hula-hula”, nosso querido bambolê!, e assim vai, infinitamente. Foi então que pensei cá com meus botões: vou escrever uma Lenga-Lenga.
Nela, contarei sobre o dia que, em cima da montanha, rodeada do som das golondrinas e com um frio na barriga (típico daquelas que, pelas ventanias do sul, é quase levada à beira do precipício), descobri: das distâncias e da ausência de palavras para descrever o silêncio cordilheiro eu também entendo. Cada um, no seu tempo e ao seu modo, tem de se ver com seu lugar limítrofe de estrangeiro de si. Ou, em outras palavras, inventar casa e veredas em seu próprio grande sertão de gelo.
SOBRE A AUTORA
Trabalhadora das letras – linguista, educadora, pesquisadora, fazedora de textos e de traduções. Amante dos livros, das revoltas e memórias populares e das mesas de bares na calçada. Passou a vida toda cruzando o rio Paranapanema: nasceu em Americana, perto das ruínas das fábricas de tecelagem, cresceu em Londrina, perto das araucárias e das perobas, e reside em Campinas, perto da universidade. Hoje, está de passagem por Santiago do Chile.
1 comentário
Que emoção estar aqui, obrigada Lara e obrigada pela Ana Elisa Ribeiro pela oficina de crônica, e aos colegas que participaram também 😘