Labirinto de espelhos – uma espécie de diário, de Adriane Figueira
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Grau zero
A narradora dessas histórias só existe dentro do abismo inconsciente do sonho, ela habita na invisibilidade da matéria, porém pregada aos corredores labirínticos de que é feito o corpo da mulher adormecida — a que lhe engendra a voz e desenha o verbo. Portanto, o relato aqui é onírico, três tempos sobrepostos: um fora, um dentro e um entre. Talvez não haja uma cronologia organizada, talvez sequer haja um tempo cronometrável ou articulado. Ela fecha os olhos para que a outra sem nome acorde.
Levanta-se no susto, perdida na escuridão do longo caminho já conhecido — desde criança trafega pelos mesmos escombros. Seus joelhos estão machucados, os dedos sangram e afastam os grossos fios de cabelos de perto dos olhos. Ela chama por alguém, mas em meio à multidão não é possível distinguir sons ou se ater a nomes. Ela passa por entre as gentes e começa a correr desorientada. Ela corre até perder o fôlego, foge da loucura. Enclausurada dentro do cenário, um sonho dentro de outro sonho, paredes altas a isolam.
Este é um mundo pelo avesso, não há idiomas estranhos, todos se compreendem e se comunicam em sonoridades diversas. Chove pouco nessa cidade, mas o frio é quase sempre intenso — talvez porque não determinado pelo clima, mas pelo dentro. Há rios e mares, o relevo é acidentado, com vias inclinadas e grandes buracos. É quase sempre noite e o céu é iluminado por corpos inventados, às vezes por luzes artificiais e outras vezes por fogo...
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Guiada por um fio corrompido, eu caminho. Há uma porção de escadas e enormes espaços em ruínas. Estou em fuga, mas desconheço a razão. Adentro em cavernas para me esconder das feras perseguidoras que farejam o meu medo e os meus fluídos. Fera
também sou, pois desvio dos obstáculos e mordo frutos proibidos. Dentro da cidade escura a velocidade é outra, os passos são mais largos e há perigos inomináveis em cada curva. Reconheço alguns rostos, mas as cenas mudam muito depressa, pisco e já estou em outro cenário, desviando de facas e balas. As águas invadem o quintal, eu me afasto da casa cheia de portas, não há janelas e a estrutura parece frágil, emite sons sinistros. Estou sempre perdendo a hora, atrasada para embarcar no bonde. Pedalo, não há asfalto nas avenidas e o céu arde...
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Por que contar em fragmentos os sonhos que me assombram? Como distinguir as imagens borradas da noite que nunca acaba? Fico cansada dessa jornada que me envolve cada vez mais pra dentro, pra perto do fogo que consome a minha imagem, meu nome impronunciável. Espelho, passagem, labirinto. Quero tudo! Quero explodir ao vento, quero que cada parte de mim se transforme em verso, navegue através do sono e alcance na realidade a moça que dorme, pois quando acordada lamenta pela espera. Quero atravessar as águas do esquecimento, vencer a morte dos afetos, a escalada do tempo. Falo através da outra, a outra fala através de mim. Somos nós — o triângulo imperfeito.
Eu sou, ela é e nós não somos. Eu durmo, ela acorda e nós nos afastamos. O que estou dizendo? Não sei, não consigo ordenar uma lógica, não consigo mudar a paisagem da memória gasta. Escalo o verbo como quem derrapa do alto, tenho fome do que é inominável. Bato os braços na água gelada e escura, nado, voo, me afogo, desabo. A vida se perde dentro de cada instante desperdiçado, eu sufoco dentro do quarto, a solidão abre buracos profundos. Como descrever o vazio? Como transpor um olhar que cega diante do breu? Eu-ela-você, nós estamos conectadas pelo fio rubro que preenche os espaços, nossas asas de cera derretem no calor desse inferno, o céu arde...
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SOBRE A AUTORA
Adriane Figueira é paraense, de mudança para a capital paulista depois de mais de uma década morando em terra carioca. Entusiasta da escrita e pesquisadora de literaturas. Autora de Revoada do Dragão (Patuá, 2021) e Voragem (Folheando, 2022).