Caicó, sertão potiguar. Na casa da esquina em frente à fábrica de algodão desativada, adultos conversam na calçada ao fim da tarde. Na calçada, estão eles sentados nas cadeiras de balanço de fitilho. Na cadeira cinza, meu avô traja seu característico chapéu preto que adorna os cabelos embranquecidos pelos rastros do tempo. Na cadeira verde ao lado, está minha avó com suas mãos enrugadas, mas ainda habilidosas, cosendo os rasgos de uma camiseta de listras.
Alguns anos depois, adentro na mesma casa. Os meus olhos percorrem o interior dela, avisto retratos pendurados na parede e na estante da sala, por entre o aparelho de TV e um rádio, lá estava o chapéu preto do meu avô recém-falecido. Diferente de outrora, agora era apenas um chapéu arrancado de um corpo sob o qual fora moldado. Senti uma dor tão incômoda ao fitar aquele chapéu que sobrevivera à partida do meu avô como se só restasse o silêncio da casa em ruínas, abandonada em uma paisagem esquecida. Esse mal-estar fora entrecortado por um cheiro convidativo de café. A casa não autorizava visitas rápidas, era preciso contemplar a imensidão do espaço.
O bairro periférico onde morava minha família, como também meus avós, era situado na região oeste da cidade, cortado por um rio poluído, tinha o apelido jocoso de “Rabo da gata”. É de praxe rotular locais mais populares e afastados dos grandes centros urbanos com nomes pejorativos. Embora se reproduza o preconceito de classe, imputando à periferia o estigma de violenta e inóspita, numa tentativa de criminalizar a pobreza, o nosso bairro da infância e adolescência era tranquilo. É fato que havia muitos problemas no quesito de infraestrutura e abandono por parte do poder público local, mas a vizinhança ainda assim era acolhedora e sensível às dores do outro. Eram pequenos comerciantes, trabalhadores informais, operários, trabalhadores do comércio, desempregados, donas de casa, empregadas domésticas, mães solos e pessoas que ganhavam a vida fazendo bicos. Havia um sentimento de pertencimento a uma comunidade que pensava coletivamente e se ajudava como podia. É o caso do dono do mercadinho, que por ter a sensibilidade de vender fiado à clientela, acabava estabelecendo vínculos com muitas famílias de trabalhadores desfavorecidos. Por mais que o seu pequeno comércio não lograsse o retorno financeiro esperado, ele era compreensível com a situação social daqueles moradores e não recusava os pedidos de pôr na conta para debitar depois.
No fim da tarde, era habitual nos sentarmos na calçada para prosear com vizinhos e transeuntes que por lá passassem. Contudo, à medida que eu crescia e me instruía formalmente, os assuntos em comum com minha família e vizinhos eram cada vez mais raros. Eu ainda arriscava falar sobre o tempo, sobre a promessa de chuva e sobre os estudos, mas o resto lhes era incompreensível, indo muito além de suas realidades fatigantes e duras. Eles desaprovavam, com razão, meu linguajar quase machadiano e eu torcia o nariz para o vocabulário coloquial deles. Enxergando por detrás das persianas, eu tinha a impressão de que ali a vida seguia um ritmo diferente, passava mais lentamente entre os risos ruidosos do meu pai, histórias contadas de vizinhos e crianças brincando na rua.
Nessas tardes amenas, minha mãe costumava contar sobre o namoro com meu pai. Dizia que ele era brincalhão, gostava de sair para dançar nas discotecas da época. Ele usava calça larga, chamada de boca de sino, combinada com camisas abertas, um estilo versátil que fez muito sucesso na década de 1970. O look virou febre nas discotecas por apresentar uma maior liberdade de estilo, como também por compor o guarda-roupa de ícones da música como Elvis Presley, Jimi Hendrix e Jackson Five. Nos fins de semana, meus pais também costumavam frequentar os cinemas de rua, situados no Centro da cidade, que hoje cederam espaço para o boom imobiliário das igrejas evangélicas: Cinema São Francisco, Alvorada, Rio Branco e Pax. Certo dia, eles viram King Kong, na versão de 1976, filme épico de ação e aventura, estrelado por Jeff Bridges, Charles Grodin e Jessica Lange. Até pouco tempo, minha mãe, impactada com o filme, relembrava a cena em que o grande gorila sobe no edifício Empire State Building e cai lá de cima. Ela sempre finalizava o relato com um tom nostálgico, confidenciando de que na sua época a cidade, localizada no semiárido nordestino, era mais divertida e, diante do meu fascínio por cinemas de ruas, eu quase me convenço disso também.
Eu nem sei por que continuo a escrever essas memórias. Meu avô já retornou ao pó, minha avó já muito idosa se queixa da vista cansada. Quanto aos meus pais, certamente, não vão ler sob o argumento de que, enquanto estão na peleja cotidiana por ganhar a vida, não lhes sobra tempo para leituras e livros. Talvez eu insista em desafiar o papel em branco porque estou um pouco morta e essa seja a forma que encontrei para renascer. Enquanto escrevo, vou me autoenunciando e inscrevendo minha presença subjetiva nestas linhas por meio de lembranças do vivido, de uma memória fragmentária que de tão breve me escapa, reluta em ficar.
Tenho rememorado o passado quase que sinestesicamente, senti cheiros, emoções e tive a impressão de ouvir o som da gargalhada da minha melhor amiga de infância ressoando na minha cabeça. Até voltei a ouvir Legião Urbana, a nossa banda preferida na adolescência. Lembrei-me muito da cinematografia de Agnès Varda em As praias de Agnès quando ela fala de si, das pessoas, dos lugares que marcaram a sua vida e da sua própria filmografia, revisitando o lugar da memória e imprimindo novas emoções no presente. Vislumbrei sua imagem em tela, andando de marcha-ré, descalça sobre a areia daquelas praias que contam de si e do mundo, num ato performático de regressar ao passado.
No fluxo do meu pensamento, eu reconstruo também minha imagem andando de costas para ruminar o vivido através da escrita do si que não se encerra nas minhas motivações pessoais. Talvez eu escreva na tentativa de resgatar o elo perdido com meus pais que, já na minha adolescência, incomodavam-se de me ver o dia inteiro absorta em meus livros, discos e filmes, construindo um muro de concreto, divisor de dois mundos. Talvez eu escreva para me lançar numa busca de autoconhecimento, ressignificando o olhar sobre o passado. Talvez eu escreva para curar as feridas e recomeçar a partir de lembranças tão frágeis quanto os traços de giz que a chuva apagou numa tarde de domingo.
--SOBRE A AUTORA
Potiguar, sertaneja, nascida em Caicó/RN lá onde as cercas são de pedra e os corações repletos de amor, jornalista (UERN), autora do livro de contos "A árvore dos frutos proibidos" (Multifoco), roteirista do curta "A flor teimosa da algaroba", mestra e doutoranda em Cinema (Unicamp), pesquiso estudos comparativos entre cinema e literatura sob a perspectiva ensaística, com ênfase para a obra da cineasta Agnès Varda e a escritora Clarice Lispector.