Felicidade invadida, de Nádia Camuça

Felicidade invadida, de Nádia Camuça

Invadida. 

Começo a curiar as frestas da casa tocando essa palavra,

repito.

Invadida.

Era uma casa erguida em um terreno fruto de uma invasão, de um bairro chamado Pantanal, periferia de Fortaleza, conhecido na época por uma chacina onde três adolescentes morreram assassinados por policiais militares em 20 de novembro de 1993, ano em que a menina que vai morar nesta casa tem quase 2 anos e seus pais ainda estavam casados.

Quatro anos depois do ocorrido a avó comprou esta casa, neste bairro, na rua Paraíso, 710, para a filha caçula e recém-separada morar com sua neta. 

A avó discordava da separação, 

vai deixar o marido por uma besteira de traição? 

E teu pai num se danava também por ai? Isso não é motivo, coisa nenhuma. 

Agora tá aí sem homem e vai cuidar da menina vsozinha. 

Eu já cuidava só de todo jeito, mãe. 

A casa tinha dois vãos, um chão de areia e um quintal onde crescia um pé de siriguela. No quintal a menina criava galo e galinha, chamados de Joãozinho e Mariazinha, seus primeiros animais de estimação, até botarem veneno pra rato e o Joãozinho morrer, tava lá no fundo do quintal, parecia só dormindo. Joãozinho! Joãozinho! Filha, acho que Joãozinho morreu. Mariazinha teve o mesmo fim. 

Quando a casa era menor dava pra ser sozinha, sem irmão, mas aí a casa foi crescendo e a solidão da menina aumentando sem o cantar do galo de manhã e as tentativas de voo da galinha.

No único quarto da casa, a cama da mãe e da filha eram colocadas juntas, uma de solteiro, outra de casal, em muitas noites a filha dormia na cama da mãe, de costas uma pra outra, “bumbum com bumbum”, elas falavam e riam antes de dormir.

Acima da cama tinha um quadro pendurado, pintado pela mãe, o único que restou antes de ela precisar largar as tintas e pincéis, quando o médico disse a causa de sua alergia.

Nunca mais voltou a pintar.

o quintal foi ficando menor

o primeiro vão da casa foi lojinha de roupa e depois ateliê de costura. 

Era linha, tecido, papel por todo lado

Uma casa-criação-o-tempo-todo. Nada ficava no lugar que estava no dia anterior. 

E toda manhã a mãe perguntava "filha, você por-um-acaso sabe onde eu deixei a tesoura?"

No quarto, a menina gostava de cantar músicas dos Beatles e fazer roupas de bonecas com os tecidos que sobravam, enquanto o pé da mãe dançava na máquina de costura e ela contava histórias da adolescência quando saia para as festas do interior, "eu pingava suor dançando essa música nas festas de Baturité, ia escondida da minha mãe!”.

O dentro da casa é também lá de fora: a zuada da rua, os latidos dos cachorros dos vizinhos e as brigas - que dava pra ouvir tudo, o grito da menina arrancando os dentes, o pai buzinando na moto, na porta – cena cada vez mais rara –, o padrasto que veio e sumiu aparecendo de novo mais de 10 anos depois, e foi embora de novo.

E é sempre mãe e filha, 

mãe e filha

mãe 

filha

Construindo essa felicidade invadida.

Mãe, se essa casa foi invadida, como faz pra gente dizer que a casa é nossa? 

Num sei, minha filha, mas esta é.

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SOBRE A AUTORA

Nádia Camuça é escritora, atriz, pesquisadora e educadora. Mestranda em Artes
(UFC). Participou de O Olho de Lilith - Antologia de Poemas Eróticos de Escritoras Cearense (2019). Lançou dois livros de poemas, Meus Fantasmas Dançam no Silêncio (2021) e Cierzo (2022), ambos aprovados pela Lei Aldir Blanc. Atualmente pesquisa dramaturgia expandida e integra o Coletivo Poexistência.

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