Facão invertido

Facão invertido

“A fome que dói aqui dentro é a fome de você” (Solange Tavares, 38 anos).


Por Ana Raja

"Dancing Female" de Yakov Knyazev.



Solange ardia em febre deitada no chão da sala escura. Rastejava feito um lagarto, lentamente, poupando o que lhe restara de energia. Entre a realidade em aceitar o fim e os flashes alucinógenos de amor, olhava Francisco arrumar as malas. Os três botões da camisa desabotoados, o corpo ereto, o excesso de gel no cabelo, mostrava o desejo que ela conhecia bem. E aquele jeito de mexer no bigode tingido, a deixava com ódio.

Há quantos dias me arrasto nesses tacos sem brilho? Perdi a noção do tempo e de muitas outras coisas. Já não sei onde termina a vida dele e começa a minha.

Sabia que arrancaria aquele homem de suas entranhas. Faria aborto se fosse preciso, promessa para qualquer santo, despacho em encruzilhada, contrato com matador de aluguel, banho de descarrego, sessão de hipnose ou alguma simpatia em noite de lua cheia.

A batida da porta é tão forte, que minha alma nunca mais será a mesma. Meu corpo calculista continua economizando viço para o auge.

Francisco ainda permanecia nos cômodos da casa, a risada debochada ecoava no quarto. Aquelas paredes foram testemunhas de grandes encenações de amor. O perfume barato ficou impregnado no banheiro. As impressões digitais colaram nos copos e naquele corpo entregue ao piso de um farsante lar.

No guarda roupa, o que permaneceu para pegar depois se misturava com os vestidos usados na gafieira, aonde iam suar seus corpos nas noites de quinta-feira. A sintonia e os passos entrosados chamavam atenção das pessoas.

Recebiam aplausos calorosos entre as músicas bailadas. Solange lembrou de como eram bons nisso, e um sorriso extraordinário de tristeza a fez recordar do passo facão invertido.

O renascimento acontece em algumas passadas, meu amor.

Ela encontrou forças. Precisava de mais uma dança. Não ouviria a ladainha cuspida da boca de gente má, anunciando que ele se desfazia em flor por uma nova morena. Rodopiariam no salão até amanhecer. Trocariam palavras pelo olhar. Verteriam suor de suas roupas. Beberiam algo forte, até a razão deixar de existir.

Ele é vaidoso. Não vai recusar o meu clamor: de amor, de dor, de horror. Quem sabe escrevo uns versos.

No amanhecer de uma sexta-feira chuvosa, Solange caminha para casa livre de Francisco. A água que escorre do vestido vermelho vai deixando para trás o rastro de tudo que viveu. Nas mãos, segura apenas o facão invertido.


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