Era pra eu estar escrevendo outra coisa
Por Lara Torres
Nos últimos dias, arrastei a escrivaninha do escritório para a sala de estar com a intenção de mudar os ares e acabei ganhando uma observadora afincada: minha cachorra, uma vira-lata caramelo roliça. Ela me vigia, blasé, de seu canto cativo no sofá, enquanto organizo uma pilha de papeis. Não opina diretamente sobre nada, é claro, mas vê-se que tampouco aprova. Tem a mesma expressão de uma antiga analista antes de me atirar uma pergunta na cara: uma única pergunta afiada que irá cortar de fora a fora toda ilusão.
Estou empenhada em afinar essa pilha - tenho a mania de anotar em qualquer papel lembretes sobre o livro em que estou trabalhando, possíveis direcionamentos, falas avulsas de personagens - papeis que, tendo cumprido a função de inscrever na memória, depois perco ou anoto coisas por cima. Seria bom também passar um pano úmido na mancha seca de café atrás do computador, será que isso sai?
Esfrego, um tanto obstinada, e ela solta um suspiro profundo. Apoia o queixo no braço do sofá. Ambas sabemos que estou procrastinando algo importante, afinal. Eu, graças a 15 anos de terapia, ela, por uma inteligência superior. O fato é que estou empacada em uma passagem do meu livro que não sei como desenvolver. E ao contrário do que seria lógico - sentar na frente no computador até encontrar uma saída - estou fugindo dele como se fosse a encarnação do diabo. E assim vou passando as semanas, sabotando meu próprio livro.
Outro dia, num café, conversava com uma amiga escritora. Ela me contou que quando recebeu o aceite de uma editora interessada em seu original, teve tanto medo de não ser lida se o publicasse que simplesmente não respondeu o e-mail. Levou mais de um ano até que sentisse confiança para responder, e por consequência, dar início ao processo de publicação. Felizmente para nós, leitoras, seu livro está para ser lançado.
Outra ocasião, outra amiga.
Em dezembro, ela defendeu o doutorado. Foram cinco anos fazendo a pesquisa enquanto cuidava, ao mesmo tempo, da mãe enfrentando uma doença grave. Somou-se a isso a pandemia e a morte de sua mãe. Apesar de tudo que enfrentou ela conseguiu concluir a tese e o doutorado. Mas, do outro lado da mesa, me confessa que quase paralisou antes da apresentação. Adiou até não poder mais a preparação da defesa, angustiada só de pensar em reler o texto e encontrar “imperfeições”. O trabalho recebeu a nota máxima da banca.
Volto para mim. No ano passado, deixei de inscrever um projeto em um edital por não acreditar que passaria. Estava pronto, 100% escrito, esperando apenas que eu apertasse o enter. Mas nos dias finais da inscrição não abri o computador. Já é tanto “não” diariamente que a possibilidade de receber mais um, para um projeto que tem tanto de mim em cada linha, me pareceu insuportável.
Peço licença às minhas amigas para trazer esses casos porque há algo em comum entre eles, entre nós, um mal endêmico à população feminina: a síndrome de impostora. Seu disparador é o medo, seu sintoma é a autossabotagem, nem sempre consciente.
A síndrome não é uma exclusividade das mulheres. Mas me parece óbvio que quando se tem o comportamento, as ambições, o desejo, o corpo, a aparência e até a trajetória moral e sexual em constante vigilância, cria-se uma pressão pelo acerto que ultrapassa a racionalidade. E só do lado de cá existe essa pressão. Como consequência, aprendemos a nutrir um medo agudo do ridículo e do fracasso, solidamente construído da infância até a vida adulta, que é capaz de fragmentar a autoestima e desmobilizar o mais genuíno desejo. É interessante para a sociedade patriarcal que seja assim: mantém-se a ordem de poder e a hierarquia de gênero. A autoestima invejável de sujeitos do gênero masculino (o Oscar vai para o branco cis hétero) está ligada à autorização que sempre tiveram para fazer o que quiserem sem um terço dessa cobrança.
Não esqueçamos também o quanto nossa cultura é marcada pela meritocracia, e como ela deturpa conceitos como sucesso, fracasso, capacidade, direito. A despeito do aprendizado ou do próprio gesto de coragem, o resultado final é o único índice de sucesso que importa. Sabemos disso teoricamente, mas na prática, não estamos habituadas a reconhecer nem validar nossos esforços, independentemente do resultado, menos ainda a celebrá-los. E esse é o nosso maior pecado.
A escritora Marcela Alves, que é poeta e psicóloga, disse algo sobre isso em um texto que carrego para a vida. Colei um trechinho abaixo:
"Dignas de homenagem são, para mim, as tentativas. O tremor, o pensamento vacilante, a incerteza, a fé e o medo são como irmãos univitelinos, e é dessa pequena loucura que nasce o gesto. Na tentativa a gente abraça todo o risco.
Conseguir é lindo, não conseguir é, muitas vezes, horrível, sim. Mas os resultados dependem um tanto bom daquilo que não somos nós. Existe uma lacuna que só a realidade preenche, há o nosso gesto trêmulo e há o gesto da vida, que nunca, nunca, sabemos qual será. A vida segue as suas regras próprias."
Eliminar o medo não é uma saída possível. Se existe vida, existe o medo. Mas é possível desarmar a síndrome. Começar perguntando do que estou com medo de verdade? ajuda a tirar o problema da dimensão inalcançável e trazê-lo para o chão, para a proporção real. Ajuda. Se eu sei de onde o medo vem, sei para onde enviar reforços.
De tudo, talvez o mais importante seja ter um grupo com quem partilhar os momentos de insegurança. Amigas que generosamente te lembrem: acredita, e vai com medo mesmo. E celebrem com você o seu gesto de coragem. Do lado de cá, quando a insegurança bate forte, é pra elas que eu corro. Por sorte, nos grupos de escrita da Casa também encontro esse respiro. Na troca com outras mulheres, eu também me fortaleço.
Escrever esse texto hoje talvez seja outro meio que encontrei de furar a síndrome. Ou uma forma metalinguística de autossabotagem, nunca se sabe. Afinal, era pra eu estar escrevendo outra coisa.
Lara Torres nasceu no interior de São Paulo em 1990. É escritora, fundadora da Casa Inventada e jornalista de formação.