Quem sabe algum deles voasse pra essas bandas. Era o que esperavam, não
eu. Vestem minha caduquice. Pronta. No jardim sou recebida por uma réstia de
sol, todo domingo esse ritual. Se conseguisse falar, avisava que não carecia o
trabalho.
À rua Gualtério número vinte, residia eu: Maria da Encarnação, nome composto
que era pra não confundir com a mãe de Deus. Minha chegada a São Paulo já
era antiga, por vezes, duvidava que estivesse mesmo na cidade grande, pois o
retrato de São Paulo visto lá em Viçosa em nada se parecia com a São Paulo
que conheci.
Madrugada, descia rumo à estação. Ia ligeiro para pegar o trem das cinco,
repassando se deixei tudo ajeitado. No guarda-comida, o pão embrulhado. Na
caçarola em cima do fogão, o almoço. O uniforme das crianças, gasto, mas
limpo, aprendi não ser sebosa. O despertador pronto para tocar às seis. Era o
tempo de lavarem a venta para tirar a remela dos olhos, engolir o pão com café
preto, e com o estômago forrado, catarem o trilhozinho que cortava o matagal e
dava no grupo escolar.
Apaguei a lamparina? Era a conta de ficar encafifada o dia todo. E o querosene
pela hora da morte. Não era o caso de voltar, já estava atravessando a pinguela, cortando caminho, não ia dar ensejo para a besta-fera do encarregado amarrar a fuça o dia todo. Era daqueles que por ser remediado e aprumado na vida se sentia o fulano mais pestilento que conheci.
Com sorte eu ia me sentar, se Deus não ajudasse ia amaçarocada mesmo, pois fim, foi o que deu. Vou enfiando o cotovelo na barriga gorda do infeliz, não bastava fungar no meu cangote com hálito azedo e o cheiro de merda despregando dos dentes arruinados, ainda se fazia de abestado para ficar relando, relando...
Ao menos no caminhão de boia fria, lá em Viçosa, os cabras tinham a deferência de deixar as mulheres se acocorarem no trajeto, era um ciclano fazer arruaça que os demais pediam tenência e logo o som do pneu na estrada cobria até o barulho dos pensamentos.
Livre do arrodeio do barrigudo, se tivesse condições, calava a boca das duas criaturas que não fechavam a matraca, era um exibimento que chega se pareciam com as biscates da zona. Não tinha cabimento tanta falação e as risadas desavergonhadas que davam de parecer que mangavam do resto do trem, com aquela felicidade toda, às cinco da manhã.
Chega que trouxe a cibalena, porque a cabeça dói como a peste, é só apear que já engulo uma, com goela seca mesmo. No caminho que faço a pé, até o restaurante da rua Duílio número oitenta e quatro, arrumo uns minutos para olhar as dálias do jardim da casa amarela, elas são cor de vinho e ornam com o amarelo da parede. Ainda vou ter uma casa amarela, com dália vinho no jardim. Dia desses, enquanto espiava, o portão arribou e quase que tenho um piripaque de tanto assombro, caminhei sem deixar de bisbilhotar dentro do carro o homem luxento, todo na brilhantina.
Lembrei dos moços de Viçosa, domingo era dia de passear no patrimônio, a moçada toda ouriçada em cima da charrete. Os olhos de esguelha à procura do amor, os rapazes mais bem afeiçoados ganhavam um sorriso ensaiado, que era um jeito de bem querer.
Aprumei os passos que era para não dar motivo de ninguém enchouriçando na minha vida, com aquela perguntação que chega me dava agonia, “O trem atrasou, foi?” O povo gosta de fuxico. Nunca gostei de ninguém bisbilhotando como se fosse meu pariceiro. Pego no batente, a cozinha é toda minha, começa a ladainha. Feito canto das lavadeiras, a música das panelas se agarrando às tampas, as facas brilhando corte, as colheres raspando grude, o rebolado do pino da panela anunciando cheiro de toucinho, o chiado da fritura, corte na cebola que traz ardume de pranto sem tristeza; o vermelho do tomate arreganhado exibindo semente, a beterraba fazendo sangue, minhas mãos temperadas a cozinhar a vida que nunca chegava no ponto.
Quando a música da fazedura cessa, é meio-dia e os moleques vão largar do grupo escolar, enquanto comem meu trabalho a preocupação come o juízo. Era um fazer de conta que eles obedeciam, quando sabia da reinação todinha, era a tarde toda rezando, sem mão de segurar o rosário, me perdia na reza, começava tudo outra vez que era pra não enganar o santo, com Deus não se brinca, diz que ele não tolera enganação, deve de ser desde que o diabo enganou a Eva.
Quando se juntavam parece que o capiroto vinha atentar, aí é que as ideias do demo entravam na cachola, como no dia que nadaram no rio até ficarem enguiados.
Quando dei por mim encontrei os trapos molhados no canto da tarimba, as pernas todas russas e eles com cara de sonso, o titico se acabando de coçar as frieiras, todo encaroçado, enquanto o maior se escondia atrás do sabugueiro, eita menino desavergonhado. Num repente de castigar, fiz foi agradecer nossa senhora que tinha guardado eles da correnteza.
Não era por falta de apregoação, deixava listada as obrigações, botar a roupa pra quarar, jogar a lavagem para o porco, dar farelo para a criação. No que careciam se divertir, era de capucheta ao redor da casa, de Maria catiça, pula sela, carriola, e que não era de ter invenção de descer a barroca. Mas moleque quando se junta, só mesmo nossa senhora pra guardar, diferença nossa, que não dava trabalho pra santa. Rumo à lavoura, era cunhar a enxada logo cedo, encher a marmita da gororoba que ia comer gelada, só não enguiava porque o estômago dava nas costas. Na sombra que encontrava para a comida assentar, ficava na admiração dos meninos voltando do grupo, naquela camisa branca feito asa de anjo e o restante do uniforme azul marinho,
marcando na vestimenta quem um dia seria patrão.
Tinha uns pais mais instruídos, mais remediados por conta que plantavam de ameia que os filhos iam no grupo. No sonho eu via o flanelógrafo da professora Sueli, ficava pendurado no caibro, meio dançando como se fosse feliz de segurar as gravuras que ela usava pra ensinar as letras. E eu de cartilha, remendando os gestos da professora, que logo viravam mainha chamando pra lida.
Voltava quase no pôr do sol, sujismunda, era pegar a rodilha a lata e buscar água na mina. Os tocos da serraria davam fogo de esquentar banho. Na área, sentada em cima da canseira, ainda conseguia me despedir do sol e ver a boca da noite engolir a casa.
Eita que os pensamentos voam, entre rezas e lembranças, finda o dia, confiro a arrumação, que é pra encerrar a labuta. É hora de fazer o retorno, sempre igual, é na marra que me jogo pra dentro do trem, essa hora não carece esperar que o povo todo birrado tenha tenência, é cada qual por si. A mulher do olho esbugalhado não deve ter costume, coitada, consigo encostar o lombo e ajeito o corpo, a cabeça nos moleques.
Na chegada, a correria, respiro fundo pra tirar das ventas o ardume azedo do ar fatigado, o chão molhado conta da chuva forte, no frescor da estiagem subo o morro agoniada, a chuva, a enxurrada, o barraco, os moleques… Um caminho que fica alongado na preocupação de ver os filhos, a enchente pode ter sido feia, vou chispando o mais ligeiro que as pernas dão conta.
Ainda na lonjura, avisto o barraco em pé, minhas pernas vão alcançando a paz, que aumenta quando enxergo todos eles sentados me esperando, conto duas vezes, todos seis, salvos mais um dia.
Grudentos do barro da chuva correram na minha direção, não tinha braços pra tanto filho, mas o coração se alargou para caber um em cada canto, e nem que fosse no sorriso que saia dos olhos cada um se ajeitou, minhas asas cobriram a ninhada toda.
Um coro de pássaros assustados; “Mamãe chegou...”
Era uma alegria sem nome, como se o céu existisse agora, não em um amanhã que nunca chega. Talvez fosse assim que se desenhava um céu, os filhos aninhados no amor da mãe.
A lamparina deixada acesa, fora engano, tinha combustível de produzir clarão. Enquanto os filhos brincavam nas sombras que se formavam nas paredes, eu ouvia o som dos grilos acompanhando as risadas desafinadas dos moleques, lá fora os vagalumes dançando acompanhavam a farra, era feito uma pintura com som, emoldurada pelas ripas da janela. As provocações que sempre vinham no aguardo do sono, aquela noite teve sabor jocoso e no lugar da costumeira arrelia, uma paz, que aumentou com o aroma de dama da noite convidando para o descanso. Sonho que nossa senhora desviou a enxurrada.
Enfastiada de tanta lembrança, uma aguinha salgada chega no canto da boca, sinto o cheiro do feijão, eles correndo no terreiro, desviando da roupa alva no varal, com aquele tom azulado de anil. A linguiça fritando pra farofa, a casa uma maloca só, chega o caçula, surrupia um teco da mandioca e sai embalado.
Um corre-corre, a casa cheia de filhos, de barulho que não perturba, no embalo dos gracejos a música distante da radiola da vizinha, tudo pronto para o sagrado almoço de domingo. “Está pronto!” Meu grito interrompe as vozes: “de marré, marré, marré, de marré deci” vão abaixando o tom até se desligarem, na correria cada qual senta pra esperar o prato.
“Está pronto!”, avisa a mão da enfermeira no meu ombro. Sinto no ar o cheiro do cardápio do domingo. Empurram minha cadeira porta adentro, enquanto confiro a cor amarelada das paredes, ainda me volto, e ela está me olhando, a dália cor de vinho, ornando com a minha velhice.
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A AUTORA
Vilma Ribeiro tem 54 anos e mora em São Paulo. É pedagoga, psicóloga clínica, especialista em Literatura para a Infância e escritora, atua como pesquisadora no grupo de Filosofia e Espiritualidade em Saúde da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). "Nós quatro eu e ela nós sem ela" (2019) é seu primeiro livro de contos e memórias. ",o dia em que não morri" é seu romance de estreia.
1 comentário
Vilma Ribeiro coloca um ritmo na sua escrita que envolve e encanta. Consigo enxergar cada fato narrado, sentir a emoção e o incômodo da personagem. Parabéns pela escolha desse lindo conto tão cheio de particularidades, singularidade e encantamento.