Dois poemas de Lilian Penteado

Dois poemas de Lilian Penteado

:

a cena é minha

eu te uso

só pra escrever melhor

 

eu flerto com a pedra

com a planta

com o vendedor da banquinha

 

a menina apressada

seu pescoço no banco da frente

 

eu vento nas tuas costas

passageira

 

você veio

me fez cócegas

eu sorri como se a graça já fosse minha

mas era teu sopro respirando sonoro o asfalto

ergui gigantes pra você

e você escapou mais uma vez

me fiz concreto

irresponsável

você me chamou e eu vim uma cidade inteira

você pressa eu indiferente e faminta

te abri todos os meus buracos

mas você só soube sonhar com eles

aéreo

não estava na cara?

em cada calçada?

em cada sobra de vidro?

eu cheia de ossos pra te encarnar

mas e você?

e eu?

eu cidade

a mais reta

sedenta

te odiei porque você veio e eu vim

te odiei porque você veio e eu ali

te abracei pra parar teu gesto de superfície

sem ritmo sem cor sem vírgula

eu sorri

você me chamou de cidade

me fez cócegas

eu sorri me contentando com muito pouco

a cada vez que você caminha em mim

a multidão me pisoteia

e aquela hora mas naquela hora

você me implodiu

me pediu mais mas eu não volto

me pediu muito mas eu não sei voltar

eu fico ali impávida

eu fico ali esfinge

como se todo o movimento fosse só seu

você só espelho

te abri todos os meus buracos

e você só soube sonhar com eles

me fez de espetáculo

e só

não sei se te deixo voltar

não sei do meu tempo

não senti nada

eu enorme e já não sei mais fazer

eu úmida

tempestade

como faço pra te pedir com a fala rouca?

viciada

desprezível

gananciosa

como se tudo

como se tudo

como se todo o concreto fosse só seu

você me engole

esqueceu que sou uma cidade inteira?

você não me dá espaço

e tem um universo entre a gente

cadê você?

e eu não te quis

de novo

minha água abafada

perdi a fome

você me fez cócegas

eu sorri como se a graça já fosse minha

eu fingi

te queria mais

colocaria tudo a perder

não soube

eu vim uma cidade inteira

você me chamou e eu vim uma cidade inteira

tem um universo entre a gente

te abri todos os meus buracos

mas você só soube sonhar com eles

eu rio de você

eu submissa

e você me fazendo

achar que sou do teu tamanho

você me fazendo enorme

eu desmorono cada vez que você não me olha

me rendi endurecida

te segurei

te abracei fumaça

te abracei porque era muito o que você prometeu

mas me deixou pedindo mais

mas eu já estava ali

eu já estava ali uma cidade inteira

como você não viu?

e você?

e eu?

eu sou uma cidade inteira

quebrada

sem contorno

não sei se sei voltar

eu invento

você desenha em mim

banal

e eu não te quis de novo

eu não fiz você me querer

sou cruel

aposto no que não sei

eu desprezo outros a cada vez que você vem

como se só você existisse

eu desprezo todas as ruas cada vez que você vem

eu desprezo todas as casas

eu desprezo cada minuto que construi

nada está ali

eu desmorono cada vez que você não me olha

eu quero mais

como você não viu?

não estava na cara?

não estava na calçada?

na sobra de vidro?

como você não viu?

me fiz do tamanho da tua fome

eu esperei que você desistisse

mas disse o contrário

eu esperava que você desistisse

por que eu não gritei isso?

mesmo se depois nada mais existisse

mesmo se eu odiasse cada um dos teus poros

me fiz do tamanho da sua fome

desmoronei

destronei

me mostrei

ávida

busquei regar minha secura

trovoei

como você não viu?

me

fiz

do

tamanho

da

tua

fome

e eu não te quis

de novo

te abri todos os meus buracos

e você só soube sonhar com eles

eu ali

nua

curvada

pronta

 -

[ são paulo escreveu pra mim ]

 

Sobre Lilian Penteado:
fui/sou arquiteta/professora e vice-versa;
me aventuro pela fotografia e a poesia me provoca, arte-corpo me acende;
habito araraquara, o interior me habita; 1/3 memento 832;
movo vida, danço entremeio.

 

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