cumulus
hoje sonhei que éramos pássaros. pequenos pássaros. pássaros-bebês, para ser bem precisa. eu te ensinava a voar. você estava com medo, não reconhecia suas asas. eu, liberta, cheia de ímpeto e desejo, apalavrei. o vento soprando no corpo é inigualável. olhos bem fechadinhos, sorriso no canto do bico. asas abertas. meu silêncio respirou profundo. passei minha asa direita na sua plumagem exuberante. um afago. nossos olhos caminharam juntos. da ponta de um galho verde saltamos. voamos por horas. observei maravilhada os seus movimentos. a luz expandida no poente, o eco dos nossos rasantes, o cheiro de terra comum ao nosso olfato...! aprendi a voltar para o ninho.
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lapso
1.
o trabalho se mudou pra minha casa
ele que se adapte a
minha nudez instantânea
2.
não sabia que eu gostava tanto de xícaras
até enfrentar as trinta e duas numa batalha
homérica com a pia
3.
estou em chamas
dois stories e treze foguinhos recebidos
4.
quanto vale uma olheira crônica e
um bloqueio criativo
inspiração vende na internet
encarei o espelho
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notas para o diário
1.
fim de quarta. nas entrelinhas, pulso. roteiro, rio, rumo. se não fosse alérgica a fumaça, teria devorado dois maços só nesta tarde. qual chave abre o travesseiro?
2.
encantada com o exemplar de Vênus em Leão.
3.
um dia vivido do lado direito. trava, torcicolo, tensão. músculos desobedientes.
4.
no fundo da xícara o destino dança. qual a dificuldade de responder e-mails, precisam mesmo olhar pra minha cara várias vezes por dia? os expressos não me sustentam mais.
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transe
corpos em trígono. sussurro poemas, ondulo caminhos entre tuas coxas. dentro. desejos singulares, palavras em fuga. atraídos, atravessados, atraentes. duplos. despudorados. e se as linhas das mãos carregassem futuros? queria saber onde minha mãe estava em 1992. as fotos sem datas e com as bordas incineradas e os olhos tampados com riscos de caneta vermelha achadas entre louças no armário da cozinha me soluçam. o pulmão fracionado em cápsulas. te salvei num sonho. corremos. adoro tuas ranhuras. dedos dançam nervos e músculos e artérias: descontrole. não estava combinado dormir de conchinha. há trancas nas janelas. guarde as sutilezas na caixa de fósforos. quando me abriram, encontraram dentro de mim uma mata vibrante e diversa e de folhas deslumbrantes e muitas raízes expostas, ramificadas. nas ramificações, palavras. aninhada no colo, uma menina descalça que acredita no afeto e abraça com inteireza os mundos que habitam outros corpos. segurando a menina, sentada no chão, vestindo uma armadura brilhante, uma mulher inalcançável de olhos amáveis e corpo aquecido. o sono excita, os corpos procuram pupilas aceleradas e batimentos desmedidos. dormimos? discordou da minha discordância. beijou de língua minha poética bem posicionada. banhados de sede e gozo e vontades. vendo digitais no breu dos umbigos, trago manhãs bifurcadas.
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hélice
nos cabides, palavras. penduro desejos em quarenta e cinco metros quadrados. extasiada, acesa, desmedida. quase não durmo. giro. do sexto andar escuto a noite. rede, trilhos, trama. a estação de trem adormecida ronca pilastras descascadas. observo ruas de postes tortos e luzes amarelas. não conheço os vizinhos, dormem cedo. a televisão me assiste sem volume. da varanda ensaio sorrisos, libero endorfina. fotos na nuvem. cultivo drives e pastas zipadas. podar telas ou regar likes? imaginação fertilizada em vinte e um caracteres. link na bio. afetos virtuais, fraturas reais. espasmos gravados com fones de ouvido. desalinhada, vomito em espaço duplo.
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A AUTORA
Gabriele Rosa (@__gabrielerosa) é natural do Rio de Janeiro. Historiadora e dramaturga de processos, assina o dramaturgismo da peça Memórias de uma Manicure (Bonecas Quebradas Teatro, 2023 – Projeto contemplado no Edital Eletrobrás 2021). É autora de Dias medidos em xícaras de café (Urutau, 2023), Não consigo me desvencilhar desse óbito ( Primata, 2023), entre outros. Colabora mensalmente com a coluna memórias táteis, intempéries e outras derivas, na Revista Ruído Manifesto.