Asmática

Asmática

Por Carla Guerson



Sai daí, menina! Não está vendo a chuva chegar? Quero gritar.


De longe, prostrada em minha janela, percebo que jamais conseguiria esbravejar alto o suficiente. Me falta fôlego. Ela não me escutaria. Brinca distraída, sem olhar para o céu. Seus olhos só veem o chão e os riscos de uma amarelinha desbotada que quase ninguém mais pulou. A solidão palpável, crescente, que se materializa com os primeiros pingos da prometida tempestade.


Do lado de dentro também está nublado. Quando o tempo fecha, os meus brônquios se recusam a abrir adequadamente. Nuvens, umidade no ar, dificuldade de respirar. Inspiro com força, mas o ar não entra. Procuro a bombinha para me abrir, à força.


Penso em fechar a janela, mas estou presa a olhar a menina. Por que ela não se assusta? Por que os raios e trovoadas não conseguem alertá-la da necessidade de ir embora? Continua pulando, sem cansar, sem dificuldade para respirar. Ela não consegue ver que é hora de se retirar?


A chuva resolve cair com força, e eu a vigio na sua teimosia de criança. Sua saia vermelha está encharcada, mas ela continua pulando. A força da lembrança me solavanca, me leva de volta àquele dia, com a saia que não era vermelha, pulando, pulando, até faltar o ar. A tempestade que chegou violenta, antes que eu pudesse gritar por socorro.


Diferente da menina, eu não estava sozinha naquele dia. Não percebi a chuva começar e continuei a brincar. Não percebi a presença dele e continuei a brincar. Não percebi os olhos que me vigiavam quando tentei me refugiar debaixo da árvore naquele terreno baldio. E continuei a brincar.


A força daquele corpo grande que caiu sobre o meu. A apatia que me tomou. O arrependimento de não ter ido embora quando os primeiros raios anunciaram. A sujeira que nunca mais saiu de mim. Aquele cheiro entranhado nos meus pulmões ocuparam o espaço do ar que nunca mais entrou por completo.


E se alguém tivesse gritado? E se tivessem tirado de cima de mim aquela tempestade que me assolou sem que eu percebesse seus sinais? E se eu tivesse tido a oportunidade de fugir antes que terminasse encharcada de líquido e sangue e lama e tudo mais que tinha saído de mim e da tempestade e do trovão? A voz do trovão. A força, a dor, o medo, o nojo. O frio.


O ar que me faltou. O mesmo que me falta agora.


A menina. Sozinha.


Na janela, com a bombinha nas mãos, uso todo o ar que tenho disponível para um grito forte: Vai embora, menina. Corre!


Ela olha na minha direção, não consegue me ver. Não sabe de onde vem o grito.


Corre! — grito de novo, mais alto. O ar faltando, inspiro, inspiro. Ela ouviu. Sente medo, acho. Eu sinto. Ela corre. Espero que para sempre. Espero que para longe.


Fecho a janela.


Ainda chove dentro de mim. E chio, sozinha. Esperando a tempestade passar.


Carla Guerson é escritora, feminista, geminiana, mãe, incomodada. Escreve em verso e prosa. É autora dos livros O som do tapa (contos, Ed. Patuá, 2021) e Fogo de Palha (poesia, Ed. Pedregulho, 2022)


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