A janela é uma fronteira. Não se sabe a qual lado pertence. Ficou o aceno dentro da casa ou o levou consigo aquele que passava? A clausura é salva por uma janela ou é a janela que revela o tamanho da clausura? Seus olhos são janelas através das quais nos comunicamos ou nos separamos?
Todas as vezes que estivemos naquela sala evitava seus olhos aflitos e rumava os meus para as janelas. Sala de espera, um lugar entre lugares, sempre gostei desses híbridos e das pausas para divagar. Você não, sua ansiedade devora os momentos e, sempre objetivo, quer o destino e nunca o trajeto. Sala de tortura seria a sua descrição.
Se estivesse em meu lugar talvez não suportaria, e com relação a isso, diriam que a natureza é sábia, mas a verdade é que trataria de suportar, como tratei eu, porque não teria outra opção. O problema é que às mulheres são deixadas poucas opções, enquanto homens têm um punhado delas e isso não tem nada a ver com natureza. Não me entenda mal, quis e quero muito essa criança, mas era assustador ter algo dentro, tão dentro, que mesmo depois de nove meses desconfio de que não fique nunca de fato fora. Não faço disso uma acusação, de forma alguma, são só devaneios, quero e me esforço para diminuir e não aumentar as distâncias entre nós. A questão é que precisava levar a cabeça para longe de suas pernas descontroladas, como se fosse você a ter as vísceras consumidas minuto a minuto, como se fosse obrigado a parir a si mesmo, sabe-se lá como, no meio dessas pernas ridiculamente másculas.
Ouvia Beatriz?
E era salva.
Levantava como se de repente tivesse me esquecido de como se levanta, arrastando o planeta comigo, rumo ao consultório de cores plácidas.
Desde pequena, busquei meu coração com as mãos, um susto que nunca passou. Depois passei a achar o seu, quando estávamos descansadamente nus, essa bomba incansável no peito, à nossa revelia, tiquetaqueando nossa existência por um prazo que ninguém sabe qual é. Abraçar o seu corpo despistava o tempo, tudo era eterno e viver parecia não ter consequência nenhuma.
Escutar aquele segundo coração dentro de mim era estranho, mas eu não dizia. Você e a médica já conheciam meu ritual de lágrimas nesse momento e sorriam ternos, como se testemunhassem a alegria em seu estado de água. A verdade é que há uma fronteira em tudo, ter dentro de mim uma pessoa me trazia uma felicidade aguda acompanhada de um inexprimível sentimento de perda. Alguma coisa inominável estava me deixando. Rumava meus olhos novamente para as janelas, buscando por trás dos prédios a clemência de
algum horizonte.
Dias depois, quando a médica disse que estava na hora, você, histérico, eu, encarnada como nunca, te amei profundamente e com a maior solidão que já experimentei. Era eu a mãe a nascer. Você seria o meu - intensamente devotado - anexo. A sua mão segurava a minha, mas todo o meu corpo, cada partícula dele, só segurava a nossa filha, prestes a expulsá-la junto a tudo que naquele momento era a vida.
Eu estou escrevendo essa carta para nunca te mandar. Tem me feito bem gastar palavras enquanto são gastos os meus seios, o cartão de crédito, o tempo. Caso lesse, a essa altura você já estaria desesperado pensando que tudo acabou e essa imagem faz brotar em mim lágrimas de compaixão. Acho que você não conseguiria entender que tudo acaba no mesmo momento em que continua e que, enquanto te vejo ninar a nossa filha, a Beatriz que
conheceu está morta, e inegociavelmente viva. Que a carta de aniversário de namoro é, de certa forma, uma carta de despedida. Digo adeus à coisa inominável enquanto o sol ergue com tons mágicos o nosso dia.
Ricardo, para suportar te ver, meus olhos irão sempre buscar as janelas.
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Marcela Alves nasceu em 1991, em Divinópolis, MG. É psicóloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em psicologia da saúde e atua na prática clínica. Escreve desde a infância. Da costela do impossível é seu primeiro livro.