
Amor da minha vida todinha, de Letícia Maia
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Maria tem uma filha de dois anos, Aninha, a menina foi muito sonhada e celebrada. Maria fez enxoval nos Estados Unidos, chá-revelação e chá-de-bebê com uma decoradora top. Foi às consultas de pré-natal todos os meses. Fez ao todo doze ultrassonografias: 3D, 4D, todos os D. Fez exames genéticos para assegurar que o feto era saudável. Qualquer bebê seria bem-vindo, mas saber que vinha com saúde a deixou aliviada. Fez fotos de gestante com a fotógrafa dos vips, marcou a cesária na melhor maternidade da cidade, um dia antes fez unha e cabelo, e no dia do parto, uma maquiagem leve.
Maria teve baby blues, uma condição delicada no pós-parto, mas teve suporte do marido, que esteve ao seu lado e foi fundamental na recuperação. Amamenta exclusivamente com leite materno, livre demanda, mesmo sendo criticada por suas amigas que resolveram dar mamadeira. Contratou uma babá super recomendada, com conhecimentos em introdução alimentar. A mulher é contra tecidos sintéticos em contato com a pele do bebê e acorda com ela todas as madrugadas durante a semana para que o marido de Maria possa descansar para o trabalho. Maria é vista por todos como uma boa mãe, e ela é mesmo: ama demais Aninha-amor-da-minha-vida-todinha.
Jennifer tem uma filha de quase dois anos, a Isis. A menina veio no susto na relação com o rolo-namorado. Jennifer queria chamar de namorado, mas ele não queria se sentir preso. Dizia que Jennifer era a mulher da vida dele, pelo menos pra ela ele dizia. Ela trabalhava numa loja de produtos de cabelo, não era registrada, mas ia todos os dias. Quando os patrões descobriram que estava grávida, pediram para não voltar até a criança nascer. Depois, se tivesse alguém com quem deixar a menina, poderia retornar à loja.
Algumas amigas de Jennifer já tinham filhos e doaram roupinhas e outras coisas necessárias. O rolo-namorado disse que o bebê não era dele, acusou Jennifer de ser uma puta barata, dizendo que, além de traí-lo, ainda fazia por pouco. Depois desse dia Jennifer não voltou a vê-lo. Quando a menina já estava pra nascer, descobriu que o hospital que teria que ir ficava a meia hora de ônibus de casa - ela não viu nenhum médico durante a gravidez. No dia do parto, com muitas dores e a bolsa rota, pegou o ônibus; por sorte era noite, a condução não estava cheia. Viu olhares de desdém e ouviu cochichos; “pobre não tem vergonha”, “nem deve saber quem é o pai”. No hospital, esperou três horas para ser atendida. Conseguiu ter seu bebê. Uma amiga foi até lá para ajudá-la a voltar para casa; nem sua mãe, nem sua avó puderam ir porque os patrões não as liberaram.
Foi levando a vida entre um bico e outro. Nesse meio tempo, conheceu outro rolo-namorado e engravidou novamente. Se sentiu burra porque já tinha passado por isso, e porque estava usando o remedinho que sua avó havia ensinado, receita caseira conhecida na comunidade há tempos. Apesar de amar sua filha, sentiu raiva da menina e do próximo bebê que estava pra chegar.
Quando Aninha fez dezoito meses, teve uma febre alta. Às três da manhã, Maria acordou com a menina chorando no colo da babá, que recomendou que fossem para o hospital. Maria se vestiu com o primeiro vestido que viu no armário, era um vermelho, não achou as chaves do carro dentro da bolsa, estava nervosa, encontrou as chaves do carro do marido e saiu; no caminho se lembrou de que o carro era automático e não sabia dirigir direito, mas juntou as forças de mãe preocupada e encarou o desafio. O hospital estava um pouco cheio, era julho, época de muito resfriado. Maria ficou esperando com Aninha nos braços.
Quando Isis fez quinze meses, teve uma febre muito alta na madrugada. Jennifer tinha acabado ter o segundo filho e não soube o que fazer. Deixou o bebê na vizinha, que era sua amiga mais próxima, e saiu com Isis no colo. Próximo à casa dela só havia um hospital particular. Chegou correndo, tentou entrar, mas o segurança a barrou. Da porta, viu uma moça que saía da emergência com uma criança no colo, como era bonita a moça, tão bem vestida àquela hora da manhã. Como não conseguiu entrar no hospital, pediu ajuda à mulher e viu no olhar da outra mãe um pouco de amor. A moça pegou na bolsa as amostras grátis que tinha recebido na emergência, medicamentos para a febre de sua própria filha. Tão doce e delicada, a moça. Disse à Jennifer que tinha dinheiro para comprar outro remédio, que não se preocupasse; mas que falasse com o médico antes de usar a medicação, que automedicação, especialmente em crianças, era perigoso. Jennifer não entendeu muito bem o que a mulher bem vestida queria dizer, mas voltou para a casa aliviada. No ônibus mesmo deu o remédio para a menina.
Alguns meses depois, Aninha ficou novamente doente. Mas, dessa vez, Maria não entrou em pânico: mandou um Whatsapp para a pediatra que agora atendia a menina, fez uma vídeo chamada e marcou uma consulta para o dia seguinte.
Pouco tempo depois, Isis ficou doente novamente. Mas, desta vez, Jennifer não ficou tão nervosa: deu o mesmo remédio que a mulher bem vestida doou aquela vez.
Aninha amanheceu melhor, mas foi à pediatra mesmo assim. Foi atendida rapidamente, fez exames e voltou a brincar dois dias depois; estaria bem disposta para a festinha de dois anos que se aproximava. Maria ficou radiante, afinal preparou tudo com tanto carinho!, contratou uma decoração que não foi barata, mas pela filha valia a pena, afinal, queriam comemorar a vida da menina, princesa, boneca-mais-linda-do-planeta-todinho, vida inteirinha de Maria.
Já Isis amanheceu molinha, fria… não completaria dois anos.
Tempos depois, Maria assistiu na TV a notícia de que uma mãe foi presa, acusada de negligência com a filhinha de um ano e dez meses, morta. Ficou horrorizada. Como uma mãe podia fazer isso com a própria filha?
Jennifer teve medo, como contaria o que aconteceu? Foi presa. Se enrolou, inventou histórias, tinha medo da polícia, já tinha visto como tratava as pessoas da comunidade. Disseram que seria julgada por um júri popular. Lembrou como olhavam pra ela na rua quando saía com os dois filhos, sozinha. Lembrou como a tratavam nos empregos. Essas mesmas pessoas a julgariam.
Não aguentou a pressão.
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Letícia Maia, 43 anos, mãe de dois fotógrafa e escritora. Formada em farmácia largou tudo após o nascimento do primeiro filho, como muitas mulheres. Há anos conta histórias através de imagens e letras. Autora de Amor em grãos (2023) e O Mar de Lucy (2022). Curadora e mediadora do clube de leitura do Pé de Palavra.