Pulmão mecânico
Vô Raymundo
no fim da tarde
com seu cigarro
em seu sofá azul
os anos passando no rosto
olhos de alvorada serena, castanha, heroica
sua camisa púrpura voltando dos papéis
um passo lento, tão lento
uma dança etérea
boina e jeans desgastados
mãos de broquéis
quando estava em seu sofá azul não havia miséria.
Comprou um livro em meu aniversário de seis anos
preciso aprender a ler Macacote e Porco Pança
eu gosto das imagens
coloridas em tons claros de aquarela
ainda não entendo as palavras
também trouxe leite, quiabo, frutas
ensinando-me a ler as estrelas
Suco de maracujá sintético na hora de fechar os olhos
Que horas são?
Nove horas
Que horas são?
Nove horas
Que horas são?
Nove horas
Que horas são?
Nove e um
E que dia é hoje?
14 de novembro
Não, dia da semana
Sexta-feira
Que dia é hoje?
14 de novembro, sexta-feira
Antes do SARS-CoV-2
Antes dos cigarros
Antes de mim
As chuvas de verão eram as senhoras da rua em dezembro
nas águas que costumam banhar Montes Claros
o hospital do outro lado da cidade, na avenida
apenas uma confusão de rostos, dores, choros
peles, sinapses, rezas, algodões
eterna espera, nascente rubra, olhos, mãos
imensidão branca sem fim
Após afluentes lamuriosos
no final do corredor a Santíssima Virgem
Rosa dos Ventos, pélago anil diáfano
ursa menor dos valetudinários
Em seu quarto
outros doentes
um com a urina púrpura em sacos sintéticos
a pia jorrando, a porta do banheiro aberta
ninguém fechou
O sangue daquela mulher corria em fios alheios
no lugar de suas veias
a canela doutra pendia no leito corrompida por algo
nunca mais os mesmos
algo longínquo soava como café
por volta das cinco
Sofá azul e fumaça pouco depois
com seu pulmão mecânico
noticiário, livros, copo de vidro marrom
mas o oceano em sua pleura continuava a te afogar
Dispneia
Retornou a branquidade hospitalar
ainda com seu pulmão mecânico
Ave Maria abençoe o zéfiro
barco de papel gráfico
mas no último dia
no último dia
traremos ele de volta?
Nós vamos trazer ele de volta!
Dança eterna, etérea
Ao seu lar, tapeçaria azul
jornal, cerâmica, café, cigarro
saxofone, inglês, proletariado
nós vamos trazer ele de volta.
Eu sei que o seu espírito dança
púrpura como a sua blusa era a sua pele
Seu corpo magro e preto estava tão inchado
Naquele quarto restou o pulmão mecânico
Não me importei em ficar debaixo do guarda-chuva
durante a ida para o cemitério
na esperança de que talvez a chuva
acorde, sangre, desintegre a minha pele e a leve
com ela para o seu cadáver
estava com uma cacharréu rosa-claro e uma calça jeans azul
naquele dia não derramei lágrima
tudo que é vivo morre, precisamos ir
sua pele estava rígida como o seu antigo pulmão mecânico
de pé ao seu lado por seis horas
quero te apoiar caso levante
você não levantou.
de pé ao seu lado por seis horas
finco a minha unha em sua testa
uma meia lua na noite de formol
você não sente dor?
de pé ao seu lado por seis horas
seis dias, seis anos, seis décadas, seis séculos
seis milênios, seis grandes explosões
quero fincar a unha no verme
que comerá a sua pele roxa e inchada
saldar o fungo em seu pulmão
uma última coreografia com a bactéria de suas antigas veias
Uma semana depois
chegando com a janta
dormindo no sofá
falando suas lições de inglês
do tempo que foi preso na ditadura
do boletim Boca do Povo
do saxofone
da cerâmica
do piano que queria comprar para mim
Mas passa
tudo passa
Em mim
Em minha pele preta
Em meu nariz largo
Em meu cabelo crespo
Em meu corpo magro e longo
Eu ainda não sabia o que era morte
Quer dizer, sabia o que era morte
mas não sabia o que era morrer
Você estaria como os outros velhinhos,
querendo sair durante a pandemia?
Ainda lembro daquele papel
de dia dos pais que entreguei-te na gráfica
era eu, você, ela e um obrigada
em letras garrafais
É que a gente tem essa mania de querer
que os nossos avós durem para sempre
Convido todo o drama para o café da tarde
proseamos
nada passa
tudo é eterno
Após a dança eterna, etérea
A queda do céu em mim
Devolvemos o pulmão mecânico para o governo.
As pessoas de pano não quebram
Atiro a boneca de pano da varanda
para ver se é seguro
as pessoas de pano não quebram
os olhos bem abertos de biscoitinho
rosa, azul e marrom nas pedras do quintal
era um costume
um costume.
acostumar-se à queda.
A noite
há de se pensar o primeiro silêncio
este que sucede a aurora e antecede os olhos à boca
para beijar a noite é preciso saber
que ela volta a qualquer hora
ela não volta a qualquer hora
e quando é dia de risinho
ela guarda todas as estrelas nas bochechas
para que os navegantes se afoguem
e ela sacie sua fome
para olhar a noite é preciso saber
que noite é noite sem estrela
e o silêncio primitivo sempre irá deglutir
o fogo congelado devora em câmera lenta
ao aceitar a noite não há exílio
ou regresso, morre-se mesmo aqui
com areia quente nos pés
e a ponta da ilha no canto dos olhos
a coalescência das fêmeas
uma fêmea nunca morre
os crisântemos em espera cristalina
perguntam – estará ela pensando o mesmo?
a gata arranca
um por um
os filhotes
come a placenta
em autofagia se nutre
em autofagia nutre
sua antologia de pequenos seres
se de olhos fechados: devore-o
há de se agarrar pela nuca
o que ainda não é filho do ar
devorado
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SOBRE A AUTORA
Maria Emanuelle Cardoso é diaspórica, mulher, nascida na primavera dos anos 2000 em Montes Claros (MG). Tem textos publicados em antologias e revistas. Mãe de gatos frajolinha e rajados e de uma dálmata, ecossocialista, aprecia cinema e artes além de suco de uva gaseificado. Suas cores favoritas são o vinho e vermelho. Gosta de contemplar calangos.