4 poemas de Maria Emanuelle Cardoso

4 poemas de Maria Emanuelle Cardoso

Pulmão mecânico

Vô Raymundo

no fim da tarde 

com seu cigarro

em seu sofá azul


os anos passando no rosto

olhos de alvorada serena, castanha, heroica

sua camisa púrpura voltando dos papéis

um passo lento, tão lento

uma dança etérea

boina e jeans desgastados

mãos de broquéis


quando estava em seu sofá azul não havia miséria.


Comprou um livro em meu aniversário de seis anos

preciso aprender a ler Macacote e Porco Pança

eu gosto das imagens

coloridas em tons claros de aquarela

ainda não entendo as palavras


também trouxe leite, quiabo, frutas

ensinando-me a ler as estrelas

Suco de maracujá sintético na hora de fechar os olhos


Que horas são?

Nove horas


Que horas são?

Nove horas


Que horas são?

Nove horas


Que horas são?

Nove e um


E que dia é hoje?

14 de novembro


Não, dia da semana

Sexta-feira


Que dia é hoje?

14 de novembro, sexta-feira


Antes do SARS-CoV-2

Antes dos cigarros

Antes de mim


As chuvas de verão eram as senhoras da rua em dezembro

nas águas que costumam banhar Montes Claros

o hospital do outro lado da cidade, na avenida

apenas uma confusão de rostos, dores, choros

peles, sinapses, rezas, algodões

eterna espera, nascente rubra, olhos, mãos

imensidão branca sem fim


Após afluentes lamuriosos

no final do corredor a Santíssima Virgem

Rosa dos Ventos, pélago anil diáfano

ursa menor dos valetudinários


Em seu quarto 

outros doentes

um com a urina púrpura em sacos sintéticos

a pia jorrando, a porta do banheiro aberta

ninguém fechou


O sangue daquela mulher corria em fios alheios

no lugar de suas veias

a canela doutra pendia no leito corrompida por algo

nunca mais os mesmos

algo longínquo soava como café

por volta das cinco


Sofá azul e fumaça pouco depois

com seu pulmão mecânico

noticiário, livros, copo de vidro marrom

mas o oceano em sua pleura continuava a te afogar


Dispneia


Retornou a branquidade hospitalar

ainda com seu pulmão mecânico

Ave Maria abençoe o zéfiro

barco de papel gráfico

mas no último dia

no último dia

traremos ele de volta?


Nós vamos trazer ele de volta!


Dança eterna, etérea


Ao seu lar, tapeçaria azul

jornal, cerâmica, café, cigarro

saxofone, inglês, proletariado

nós vamos trazer ele de volta.


Eu sei que o seu espírito dança

púrpura como a sua blusa era a sua pele

Seu corpo magro e preto estava tão inchado

Naquele quarto restou o pulmão mecânico

Não me importei em ficar debaixo do guarda-chuva 

durante a ida para o cemitério

na esperança de que talvez a chuva

acorde, sangre, desintegre a minha pele e a leve 

com ela para o seu cadáver

estava com uma cacharréu rosa-claro e uma calça jeans azul

naquele dia não derramei lágrima

tudo que é vivo morre, precisamos ir


sua pele estava rígida como o seu antigo pulmão mecânico


de pé ao seu lado por seis horas

quero te apoiar caso levante


você não levantou.


de pé ao seu lado por seis horas


finco a minha unha em sua testa

uma meia lua na noite de formol


você não sente dor?


de pé ao seu lado por seis horas

seis dias, seis anos, seis décadas, seis séculos

seis milênios, seis grandes explosões


quero fincar a unha no verme 

que comerá a sua pele roxa e inchada

saldar o fungo em seu pulmão

uma última coreografia com a bactéria de suas antigas veias


Uma semana depois

chegando com a janta

dormindo no sofá

falando suas lições de inglês

do tempo que foi preso na ditadura

do boletim Boca do Povo

do saxofone

da cerâmica

do piano que queria comprar para mim


Mas passa

tudo passa


Em mim

Em minha pele preta

Em meu nariz largo

Em meu cabelo crespo

Em meu corpo magro e longo


Eu ainda não sabia o que era morte

Quer dizer, sabia o que era morte

mas não sabia o que era morrer


Você estaria como os outros velhinhos,

querendo sair durante a pandemia?


Ainda lembro daquele papel 

de dia dos pais que entreguei-te na gráfica

era eu, você, ela e um obrigada

em letras garrafais


É que a gente tem essa mania de querer

que os nossos avós durem para sempre


Convido todo o drama para o café da tarde

proseamos

nada passa

tudo é eterno


Após a dança eterna, etérea

A queda do céu em mim

Devolvemos o pulmão mecânico para o governo.

 

As pessoas de pano não quebram

Atiro a boneca de pano da varanda

para ver se é seguro

as pessoas de pano não quebram 

os olhos bem abertos de biscoitinho

rosa, azul e marrom nas pedras do quintal

era um costume

um costume.

acostumar-se à queda.


A noite

há de se pensar o primeiro silêncio

este que sucede a aurora e antecede os olhos à boca

para beijar a noite é preciso saber 

que ela volta a qualquer hora 

ela não volta a qualquer hora

e quando é dia de risinho

ela guarda todas as estrelas nas bochechas

para que os navegantes se afoguem

e ela sacie sua fome

para olhar a noite é preciso saber 

que noite é noite sem estrela

e o silêncio primitivo sempre irá deglutir

o fogo congelado devora em câmera lenta

ao aceitar a noite não há exílio

ou regresso, morre-se mesmo aqui

com areia quente nos pés

e a ponta da ilha no canto dos olhos

 

a coalescência das fêmeas

uma fêmea nunca morre

os crisântemos em espera cristalina

perguntam – estará ela pensando o mesmo?

a gata arranca

um por um

os filhotes

come a placenta

em autofagia se nutre

em autofagia nutre

sua antologia de pequenos seres

se de olhos fechados: devore-o

há de se agarrar pela nuca

o que ainda não é filho do ar

devorado

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SOBRE A AUTORA 

Maria Emanuelle Cardoso é diaspórica, mulher, nascida na primavera dos anos 2000 em Montes Claros (MG). Tem textos publicados em antologias e revistas. Mãe de gatos frajolinha e rajados e de uma dálmata, ecossocialista, aprecia cinema e artes além de suco de uva gaseificado. Suas cores favoritas são o vinho e vermelho. Gosta de contemplar calangos.

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