2 poemas de Michele Soares

2 poemas de Michele Soares

cama II 

uma cama como uma piscina 

escrever no tecido o gesto 

nadar nos lençóis 

formar desenhos 

mudar a disposição cotidiana das coisas 

fazer formas que as videntes poderão ler 

como as ervas no fundo das xícaras 

te chamar para mostrar quantos metros não nadei 

e então ver nos lençóis a parte não revolvida 

você já não está.

 

fundo de gaveta 

quase sempre trancada à chave 

a gaveta da escrivaninha é cemitério 

para famílias e famílias de isqueiros 

como numa democracia 

há espaço para várias 

idades 

preços 

marcas 

tamanhos 

cores 

não distingo reais e falsos zippos 

como não distingo reais e falsos profetas 

o azul sem nome de 2 pilas 

comprado em itapecerica 

vale pelo bic branco de 10 pilas 

comprado a 10 metros da tua antiga casa 

aquela onde fomos tão felizes 

à noite, gosto de fitar isqueiros com um prazer quase perverso sentir seus pesos, decorar suas formas 

chacoalhar seus corpos contra a luz 

para quem sabe enxergar melhor o fluido 

desejo deglutir a presença inflamável 

desses pequenos objetos 

que estou na iminência de perder 

bons professores

os isqueiros me ensinam 

sobre aquilo que 

por acaso, esquecimento ou furto também será tirado de mim muito antes de terminar.

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SOBRE A AUTORA

Michele Soares é filha dos anos 2000 e estuda Letras na Universidade de São Paulo. Quando não está lendo, muito provavelmente está imersa na escrita de algum poema, artigo, resenha ou relatório científico. 

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