cama II
uma cama como uma piscina
escrever no tecido o gesto
nadar nos lençóis
formar desenhos
mudar a disposição cotidiana das coisas
fazer formas que as videntes poderão ler
como as ervas no fundo das xícaras
te chamar para mostrar quantos metros não nadei
e então ver nos lençóis a parte não revolvida
você já não está.
fundo de gaveta
quase sempre trancada à chave
a gaveta da escrivaninha é cemitério
para famílias e famílias de isqueiros
como numa democracia
há espaço para várias
idades
preços
marcas
tamanhos
cores
não distingo reais e falsos zippos
como não distingo reais e falsos profetas
o azul sem nome de 2 pilas
comprado em itapecerica
vale pelo bic branco de 10 pilas
comprado a 10 metros da tua antiga casa
aquela onde fomos tão felizes
à noite, gosto de fitar isqueiros com um prazer quase perverso sentir seus pesos, decorar suas formas
chacoalhar seus corpos contra a luz
para quem sabe enxergar melhor o fluido
desejo deglutir a presença inflamável
desses pequenos objetos
que estou na iminência de perder
bons professores
os isqueiros me ensinam
sobre aquilo que
por acaso, esquecimento ou furto também será tirado de mim muito antes de terminar.
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SOBRE A AUTORA
Michele Soares é filha dos anos 2000 e estuda Letras na Universidade de São Paulo. Quando não está lendo, muito provavelmente está imersa na escrita de algum poema, artigo, resenha ou relatório científico.